Estimular é preciso
O amor pelos livros, quase sempre, surge na infância. Nesse aspecto, muitos pais cometem um erro estratégico às vezes sem possibilidades de correção e cujo resultado, quase sempre, é o oposto ao pretendido. Em vez de “estimularem” os filhos à leitura, mostrando-lhes o quanto essa atividade é fascinante e prazerosa, os “obrigam” a ler. E o “tiro acaba saindo pela culatra”.
A criança finda por associar esse desejável exercício da mente e do espírito, até de forma inconsciente, a enfadonha obrigação, a uma (para ela) desagradável e até intolerável imposição alheia, no caso de um adulto, e fica privada, dessa forma, de transcendentais descobertas e das delícias dessa incomparável aventura intelectual.
Estimular é muito diferente de obrigar. Pior é quando na escola a criança tem a infelicidade de contar com professores que fazem do ensino mera profissão e não sacerdócio. Há mestres que confundem senso de disciplina com autoritarismo. E que, nas aulas de leitura, em vez de acudirem um aluno em dificuldades, punem-no e, não raro, ridicularizam-no diante de toda a classe. Aí é que a coisa não anda mesmo (e nem poderia andar).
Tive a felicidade, por circunstâncias alheias à minha vontade, no entanto benignas, de ter meu amor pelos livros despertado precocemente. Narro minha experiência pessoal, esclareço, não para ostentar eventual inteligência superior (que não tenho) ou para me pôr em posição de exemplo a ser seguido. Longe disso. Faço-o porque é a que (óbvio) conheço de perto e em detalhes e creio que possa ser útil a alguém.
Tive a ventura de contar com um pai amoroso, esclarecido e que exerceu com proficiência não somente a paternidade, com tudo o que de positivo ela implica, mas as funções suplementares de primeiro mestre – o que me ensinou o be-a-bá –, de guia, de exemplo, de referencial e, sobretudo, do primeiro e maior amigo dos tantos que tenho, que já tive e que eventualmente ainda terei. Foi um homem notável, em sua simplicidade (geralmente as pessoas exemplares e que fazem a diferença no mundo são simples), o que pode ser atestado pelos que o conheceram e com ele conviveram.
Meu pai era (porquanto já faleceu há quase cinco anos) russo, tendo emigrado para o Brasil, com a família, ainda adolescente. Subitamente, movido pelas circunstâncias, teve que se adaptar a um país para ele então estranho e a uma cultura, digamos, mais “exótica” do que a que conhecera até então. Tudo era diferente: os ambientes, o clima, os costumes, a língua e até o alfabeto. Muitos imigrantes custaram a se adaptar. Alguns nunca se adaptaram e retornaram aos países de origem. Outros tantos, aprenderam o português com extrema dificuldade e até hoje não dominam adequadamente os cânones do idioma, que falam com sotaque e com inúmeros erros gramaticais.
Com meu pai não ocorreu nada disso. Encantou-se, de cara, com o país que o acolheu. Assumiu seus costumes, assimilou sua cultura e, por ter facilidade para línguas, não tardou a aprender também a nossa. Perfeccionista, porém, não queria apenas “falar” o novo idioma, mas pretendia fazê-lo bem. Ademais, sabia que para isso se tornar possível, teria que ler, e muito. Mas havia um grande obstáculo: o alfabeto. O nosso é o latino. O russo, é cirílico, que lembra, ligeiramente, o grego antigo, do qual assimilou diversas letras.
O que poderia ser (e era) barreira intransponível para vários de seus conterrâneos (que jamais aprenderam a ler em português), não o era para aquele homem admirável. Primeiro, comprou uma cartilha, dessas em que aprendemos as primeiras letras. E decidiu que aprenderia a ler em português junto com o filho de cinco anos (eu). Tornamo-nos cúmplices nessa empreitada, para nós dois, fascinante aventura. Ele, todavia, não me obrigou a nada. Fez aquele aprendizado parecer uma brincadeira, mais interessante e estimulante do que qualquer outra que eu fazia com as crianças da minha idade. E, de fato, era.
As dúvidas que a princípio surgiam (e era natural que surgissem), as esclarecia com os outros (colegas de trabalho, vizinhos, conhecidos). Não tinha vergonha de perguntar o que não sabia. Mesmo sob o risco de ser escarnecido ou encarado como tolo . Assim, aprendemos, simultaneamente, a ler nesse fascinante idioma de Camões, que eu aprendera a falar tão recentemente (como ele), em circunstâncias dramáticas que narrei em uma de minhas tantas crônicas.
Da cartilha, passamos às revistas em quadrinhos. Destas, o salto seguinte foram os jornais. A seguir, veio a leitura da Bíblia. E vieram os livros, múltiplos, variados, copiosos, profusos, sobre praticamente todos os assuntos e gêneros: de romances a poemas; de contos a ensaios e assim por diante. Tornamo-nos, ambos (e simultaneamente) leitores compulsivos. Mas não por necessidade ou por obrigação. Por puro prazer.
Aos poucos, uma (a princípio pequena e incipiente) biblioteca foi ganhando forma. E, apesar dó custo (os livros, entre nós, convenhamos, nunca foram baratos, como deveriam ser), foi crescendo, crescendo e crescendo. Não me lembro, durante um período, digamos, de dez anos, de um só mês em que novos volumes não fossem acrescentados ao nosso acervo. A leitura tornou-se hábito para nós dois, que nunca o deixamos. Hábito, por sinal, apaixonante e prazeroso.
Mesmo quando já octogenário, com os olhos comprometidos por insidiosa catarata, meu pai jamais deixou de ler. Imaginem com que dificuldade! Ele, porém, nunca encarou isso como sacrifício. Sempre considerou o livro o que diziam dele os também compulsivos leitores romanos (posto que raros): “Nutrimentum spiritus”. Ou seja: “Alimentos do espírito”. E é assim que o considero e que meu pai considerou até seu último dia de vida. Apaixonei-me pela leitura porque nunca fui “obrigado” a ler. Fui estimulado a fazê-lo, o que é bem diferente. E... estimular é preciso.
Boa leitura.
O Editor.
O amor pelos livros, quase sempre, surge na infância. Nesse aspecto, muitos pais cometem um erro estratégico às vezes sem possibilidades de correção e cujo resultado, quase sempre, é o oposto ao pretendido. Em vez de “estimularem” os filhos à leitura, mostrando-lhes o quanto essa atividade é fascinante e prazerosa, os “obrigam” a ler. E o “tiro acaba saindo pela culatra”.
A criança finda por associar esse desejável exercício da mente e do espírito, até de forma inconsciente, a enfadonha obrigação, a uma (para ela) desagradável e até intolerável imposição alheia, no caso de um adulto, e fica privada, dessa forma, de transcendentais descobertas e das delícias dessa incomparável aventura intelectual.
Estimular é muito diferente de obrigar. Pior é quando na escola a criança tem a infelicidade de contar com professores que fazem do ensino mera profissão e não sacerdócio. Há mestres que confundem senso de disciplina com autoritarismo. E que, nas aulas de leitura, em vez de acudirem um aluno em dificuldades, punem-no e, não raro, ridicularizam-no diante de toda a classe. Aí é que a coisa não anda mesmo (e nem poderia andar).
Tive a felicidade, por circunstâncias alheias à minha vontade, no entanto benignas, de ter meu amor pelos livros despertado precocemente. Narro minha experiência pessoal, esclareço, não para ostentar eventual inteligência superior (que não tenho) ou para me pôr em posição de exemplo a ser seguido. Longe disso. Faço-o porque é a que (óbvio) conheço de perto e em detalhes e creio que possa ser útil a alguém.
Tive a ventura de contar com um pai amoroso, esclarecido e que exerceu com proficiência não somente a paternidade, com tudo o que de positivo ela implica, mas as funções suplementares de primeiro mestre – o que me ensinou o be-a-bá –, de guia, de exemplo, de referencial e, sobretudo, do primeiro e maior amigo dos tantos que tenho, que já tive e que eventualmente ainda terei. Foi um homem notável, em sua simplicidade (geralmente as pessoas exemplares e que fazem a diferença no mundo são simples), o que pode ser atestado pelos que o conheceram e com ele conviveram.
Meu pai era (porquanto já faleceu há quase cinco anos) russo, tendo emigrado para o Brasil, com a família, ainda adolescente. Subitamente, movido pelas circunstâncias, teve que se adaptar a um país para ele então estranho e a uma cultura, digamos, mais “exótica” do que a que conhecera até então. Tudo era diferente: os ambientes, o clima, os costumes, a língua e até o alfabeto. Muitos imigrantes custaram a se adaptar. Alguns nunca se adaptaram e retornaram aos países de origem. Outros tantos, aprenderam o português com extrema dificuldade e até hoje não dominam adequadamente os cânones do idioma, que falam com sotaque e com inúmeros erros gramaticais.
Com meu pai não ocorreu nada disso. Encantou-se, de cara, com o país que o acolheu. Assumiu seus costumes, assimilou sua cultura e, por ter facilidade para línguas, não tardou a aprender também a nossa. Perfeccionista, porém, não queria apenas “falar” o novo idioma, mas pretendia fazê-lo bem. Ademais, sabia que para isso se tornar possível, teria que ler, e muito. Mas havia um grande obstáculo: o alfabeto. O nosso é o latino. O russo, é cirílico, que lembra, ligeiramente, o grego antigo, do qual assimilou diversas letras.
O que poderia ser (e era) barreira intransponível para vários de seus conterrâneos (que jamais aprenderam a ler em português), não o era para aquele homem admirável. Primeiro, comprou uma cartilha, dessas em que aprendemos as primeiras letras. E decidiu que aprenderia a ler em português junto com o filho de cinco anos (eu). Tornamo-nos cúmplices nessa empreitada, para nós dois, fascinante aventura. Ele, todavia, não me obrigou a nada. Fez aquele aprendizado parecer uma brincadeira, mais interessante e estimulante do que qualquer outra que eu fazia com as crianças da minha idade. E, de fato, era.
As dúvidas que a princípio surgiam (e era natural que surgissem), as esclarecia com os outros (colegas de trabalho, vizinhos, conhecidos). Não tinha vergonha de perguntar o que não sabia. Mesmo sob o risco de ser escarnecido ou encarado como tolo . Assim, aprendemos, simultaneamente, a ler nesse fascinante idioma de Camões, que eu aprendera a falar tão recentemente (como ele), em circunstâncias dramáticas que narrei em uma de minhas tantas crônicas.
Da cartilha, passamos às revistas em quadrinhos. Destas, o salto seguinte foram os jornais. A seguir, veio a leitura da Bíblia. E vieram os livros, múltiplos, variados, copiosos, profusos, sobre praticamente todos os assuntos e gêneros: de romances a poemas; de contos a ensaios e assim por diante. Tornamo-nos, ambos (e simultaneamente) leitores compulsivos. Mas não por necessidade ou por obrigação. Por puro prazer.
Aos poucos, uma (a princípio pequena e incipiente) biblioteca foi ganhando forma. E, apesar dó custo (os livros, entre nós, convenhamos, nunca foram baratos, como deveriam ser), foi crescendo, crescendo e crescendo. Não me lembro, durante um período, digamos, de dez anos, de um só mês em que novos volumes não fossem acrescentados ao nosso acervo. A leitura tornou-se hábito para nós dois, que nunca o deixamos. Hábito, por sinal, apaixonante e prazeroso.
Mesmo quando já octogenário, com os olhos comprometidos por insidiosa catarata, meu pai jamais deixou de ler. Imaginem com que dificuldade! Ele, porém, nunca encarou isso como sacrifício. Sempre considerou o livro o que diziam dele os também compulsivos leitores romanos (posto que raros): “Nutrimentum spiritus”. Ou seja: “Alimentos do espírito”. E é assim que o considero e que meu pai considerou até seu último dia de vida. Apaixonei-me pela leitura porque nunca fui “obrigado” a ler. Fui estimulado a fazê-lo, o que é bem diferente. E... estimular é preciso.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Uma vez mais sou obrigada a culpar
ResponderExcluirminha mãe por gostarmos de ler.
O incentivo inicial foi dela, que adorava
ler aqueles livrinhos de western.
Adorava as capas daqueles livrinhos e os
devorava junto com ela sob a luz do lampião.
Abraços
Uma história linda e tão apaixonante quanto a Literatura. Uma verdadeira benção, Pedro. O que mais gostei foi a introdução, em que defende o exemplo dado por ser o que conhece. Lição de humildade, mesmo que sempre diga não ser humilde. Muito bem!
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