domingo, 13 de novembro de 2011



Os pregões que me lembro do Recife "matuto"

* Por Paulo Lisker

"SADIGURSKY", o mascate judeu e outras coisas.

Passaram-se os dias de euforia e alegria para o bem geral da comunidade judaica com a chegada inesperada do irmão gêmeo do Senhor Sadigursky. A Europa estava destroçada, resultado da Segunda Guerra Mundial. Mais um judeu escapara vivo da fera nazista, esta era a causa da enorme alegria.
Doaram algum dinheiro, uns móveis e uma cama velha, alguma roupa usada e os dois irmãos gêmeos habitavam o quartinho no "pé de escada" encostado à farmácia Saúde, na Praça Maciel Pinheiro. Passaram-se uns dias então o pessoal da colônia israelita se deu conta da semelhança entre os dois irmãos Sadigursky. Era uma semelhança tal que não possibilitava distinguir um do outro nem de dia nem de noite. Coisa tão parecida não existia na cidade até então, cópia perfeita, "papel carbono" ou como diz o povo na rua: "cuspido e escarrado" (o correto seria dizer: "esculpido em Carrara" (Carrara uma espécie de mármore produzido na Itália, segundo o Prof. Pasquale).
Tinham o mesmo número no tamanho da roupa e dos sapatos, o mesmo tom de voz fanhoso e juntos moravam no "pé de escada" na Praça Maciel Pinheiro. O mesmo gosto pela comida, o que comia um também comia o outro irmão. Usavam para ler os mesmos óculos e até o mesmo chapéu estilo Panamá, surrado pra valer, de ventos, de sol e chuvas. Chapéu doado já fazia um tempão ("muito tempo", na língua de gente) pelo senhor Bogater o padrasto do meu amigo Vivi. Este chapéu já viu tempos melhores quando o senhor Bogater nas suas andanças nos municípios de Catende e Palmares trabalhava como ambulante, vendendo a prestação.
Os irmãos Sadigursky eram pobres e não se davam ao luxo de quase nada. O veterano Iossale escrevia música e era de vez em quando maestro substituto das bandas de música nas festas da colônia israelita, onde quase sempre era convidado. Caso não fosse para maestro era para fotógrafo do evento ou mestre garçom encarregado das bebidas geladas nas bacias de gelo no quarto dos fundos (assim era na época para gelar as bebidas para o evento). Ainda não se falava em geladeiras elétricas. Quando muito na casa dos judeus mais ricos tinha uma "geleira" que não é nada mais que um caixão com tampa e fechadura que esfriava alguns produtos alimentícios e umas garrafas de água na base de meia barra de gelo que durava algumas horas segundo o clima imperante no Recife naquele dia. O gelo se derretia, restava água e o pó de serra que servia para conservar a meia barra de gelo um tiquinho mais tempo (pouquinho, na língua de gente).
Os irmãos faziam qualquer coisa para ganhar uns cobres. Já ia esquecendo, também ensinava aos meninos da comunidade os primeiros passos no aprendizado da arte do violino. Ele mesmo tocava mal "prá burro", ou melhor, dizer "azucrinava" nas cordas do instrumento. Era dono de tantas profissões, não era "mestre" em nenhuma delas.
Em iídiche se diz (eita língua da peste tem ditado pra tudo): "A sach meluches und veinik bruches" ou em língua de gente: "muitas profissões e pouco ganha pão". O irmão Shmerl, recém chegado foi no passado exímio flautista, porém o frio desgraçado e a debilidade física no período que foi jogado num campo de concentração das bestas nazistas perdeu três dedos e deixou a flauta para sempre.
Ao terminar a guerra na Europa, o exército soviético libertou tais campos e os poucos sobreviventes foram obrigados a fazer a limpeza das barracas e do campo em geral para evitar que o tifo e piolhos se alastrassem para as aldeias vizinhas. Foi aí nesta limpeza que ele achou um realejo (há quem o chame de gaita) de outro judeu que não aguentou a "barra" e morreu debilitado pela fome, dois ou três meses antes da libertação do campo.
Este judeu que com todo o perigo de vida escondeu a sua gaita durante meses até que sucumbiu pela fome e anemia. Na sua ficha pessoal que encontraram no arquivo do campo, dizia: “Wroblevsky Anton, polonês, quarenta e seis anos, casado, judeu e maestro da orquestra municipal de Varsóvia".
Este realejo ele tocava escondido dos guardas alemães. Talvez fosse uma recompensa ou uma solução para a surdez que acometia (imagina um maestro de fama internacional ficar surdo) aos seus ouvidos que deixaram de ouvir música do dia que o trouxeram nos transportes de judeus (em vagões para transportar gado nos tempos de paz), para a "solução final” no campo de concentração nazista.
Como o realejo não tinha mais dono, pôs no bolso, depois de ter pedido permissão ao "polkovnik" (militar soviético) que comandava a limpeza do campo. Queimavam o lixo e enterravam centenas de cadáveres que os alemães nazistas ao fugir não tiveram tempo de incinerar nos seus famigerados fornos, mesmo que os seres humanos ainda respirassem um tiquinho. Só alemão nazista seria capaz de tal ação diabólica e ademais eram "cristãos". Inconcebível. Por isso mesmo o rancor dos judeus do mundo todo contra o Papa Pio XII, que calou!
Com a roupa do corpo, sem papeis de identidade, com um salvo conduto emitido pela Cruz Vermelha Internacional e este realejo, Shmerl chegou ao Recife. Esta era toda sua bagagem e bens que possuía. Diziam os vizinhos do "pé de escada" que ouviam pela noite adentro, melodias celestiais que alguém tirava deste instrumento. Era o Shmerl, mesmo sem os três dedos numa das mãos.
O nome dele era Samuel no "papel oficial" da Cruz Vermelha, porém em iídiche era Shmerl. Semanas depois da sua chegada, senhor Rotman que se achava entendido na cultura popular judaica (sua filha Nair foi violoncelista famosa até fora do Brasil), ao ouvi-lo tocando realejo na praça, o inscreveu num concurso de calouros na única rádio existente no Recife, a Rádio Clube de Pernambuco, esta que ainda não "falava para o mundo"! Segundo minha opinião e as lembranças da minha cabeça de velho, quem primeiro usou este "slogan" em português e inglês no final de suas transmissões nas madrugadas do Recife foi a "Radio Tamandaré”, que ainda cheguei a escutar na época da transmissão experimental. Se estou enganado que me desculpem. Na velhice tem disso também.
Neste programa de calouros comandado pelo famoso radialista Fernando Castelão, ele conseguiu o segundo lugar. Isto só por que tocava instrumento e os outros candidatos cantavam e o programa tinha esta finalidade, selecionar o melhor dos calouros cantores. Os organizadores do programa ficaram tão surpresos durante os ensaios com o nível da música que tocava aquele gordinho, baixinho, mal vestido de gravata borboleta que consentiram deixá-lo participar, apesar de que era um concurso com outros propósitos.
No final da competição lhe concederam o segundo lugar e um prêmio de consolação de quinhentos mil réis. O pessoal judeu lá na praça, (eu como menino me lembro) quando escutpu o programa transmitido pela Rádio Clube de Pernambuco, através do velho rádio da "portinha" da Água Soda do seu Vasserman, começou a chorar ao ouvir a música Kleizmer que Shmil tocava.
Era o caçula Sadigursky tocando de uma forma magistral melodias do passado judaico na Europa. Saudades do velho mundo arrancam lagrimas até das pedras. Assim dizem em iídiche: "trern gueien arup fin di shteiner". O resto do povo na calçada da "portinha" aplaudia de pé como se estivesse no auditório.
Na colônia judaica, aqueles que já possuíam o "aparelho de rádio" em casa (não eram muitos, o rádio de válvulas, era luxo naquele tempo), escutaram o programa em que "der griner" (o novato) Sadigursky participou. Era o primeiro judeu a se apresentar como artista na Rádio Clube, uma honra enorme para todos eles! Sentiam-se agora integrados na população geral do Recife matuto.
“Temos um representante artista judeu na única estação de rádio da cidade; é honra a beça e pra mais de contrato (maneira de falar que os judeus assimilaram do linguajar da rua, assim se sentiam mais "brasilianer"). Vocês precisavam ver a alegria do Shmil. Era a primeira vez que ganhara dinheiro no Brasil. Dizem que não dormiu a noite toda contando ao seu irmão o acontecido nos estúdios da Radio Clube.
Seu irmão não o acompanhou nos ensaios, pois não tinha dinheiro suficiente para pagar ida e volta no bonde para dos dois. Assim sendo ele o colocava no bonde na Rua do Hospício e pedia ao condutor que o fizesse descer defronte dos estúdios. Onde eram os estúdios? Na Avenida Cruz Cabugá creio, lá pros lados de Santo Amaro. Não me lembro bem, mas devia ser por aqueles lados defronte do cemitério.
Nisto terminou capítulo de músico do irmão Shmil. Não sei se o fato é verdadeiro, escutei de outrem. Vendo pelo preço que comprei! Dizem que o viram tocando realejo no mercado São José, junto ao posto de caldo de cana do senhor Severino Clodoaldo, logo na entrada lateral do mercado. Aos seus pés, o surrado chapéu Panamá para coletar alguns trocados dos que passavam por ali para tomar um caldo de cana frio com gelo e comer um pão doce. Invenção recifense de prover energia a um ser humano por 24 horas e ainda mais, gostoso que é. Até os carregadores de moveis e pianos não dispensavam esta refeição pelas manhãs. Café é pra sulista. Aqui o que dá sustento é o caldo de cana com pão doce!
Muitos outros paravam para escutar sua música. Quando lhe perguntavam se o barulho da máquina espremendo cana e as buzinadas dos caminhões descarregando apetrechos de barro e abacaxi de Caruaru não estragavam a sonoridade e a harmonia que tirava da sua gaita, ele respondia meio encabulado: “Yo sô o soliste, este barulhes Du maquine i di caminhon son músicos acompanhantes brasilianerim. Já tenhe a minhe orquestre. Shmerl e a Orquestre Barulhes di Mercade Saun Jusé". Dizia isto num português "dos galegos" judeus do Recife. Difícil de entender para quem não estivesse familiarizado com esta pronuncia importada do leste europeu.
Traduzido pra língua de gente: "Eu sou o solista e o barulho das máquinas e dos caminhões são meus músicos acompanhantes brasileiros. Eu já tenho minha própria orquestra, Shmerl e a Orquestra do Barulho do Mercado São José!. e ria como um menino banguelo (sem dentes) satisfeito "pra burro" por pensar que já tinha aprendido falar português.

• Escritor

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