Heil Hitler
* Por Marco Albertim
O fio de sangue escorrendo do nariz juntou-se ao suor do rosto. Convinha removê-lo com o dorso da mão. Mas uma lágrima encorpada com o sal do suor, desceu rumo ao nariz; misturando-se ao sangue, deu vitalidade à pele rosada. Sentindo a trilha aberta entre os fios do bigode, removeu-a com ritmo agônico. Ainda lhe restavam forças, e a tremura nas mãos deu conta da mise-em-scéne, mesmo com o suor basto no rosto incendido.
Ele se levantara da mesa a uma distância de dois metros do outro. Com o violão, sentara-se vizinho, inda que de costas, à mulher de seu desafeto. Pusera-se a tocar umas notas de pungência fingida. O desafeto, espreitando-o, trocara de lugar com a mulher; também bebera, e seu gesto mostrou-o tão incomodado quanto hostil. Agrário distinguiu a chance de se tornar vítima:
- Pare com isso... Acabe com isso...
Não houve tempo para pôr o logro a descoberto. Tamoio, chispando nas ventas, disparou um soco no nariz de Agrário; recebeu outro de volta e caiu, inda que deixando a hemorragia numa das narinas de Agrário.
A briga teve fim com a interferência dos outros. Tamoio, com a mulher e um amigo, seguiu para outro restaurante. Não tinha mais fome, e bebeu dois copos de cerveja para manter o ríctus.
Agrário manteve-se no mesmo lugar, com o violão de lado. Desfiou um choro forçado, auxiliado pela bebida; não sentia dor, mas falou de modo a se mostrar quão compungido ficara com a reação hostil de Tamoio. Se, de suas entranhas, o mínimo de pesar o prostrava, era por ter sido também ele o agressor aos olhos da mulher do outro.
Noutro tempo, antes das estocadas, dos sopapos, confessara o interesse por Louise; confessara a ela, na frente dos amigos dos dois, e do próprio Tamoio, distraído noutras conversas. Comparou-se com o outro, sopesando-se num conchego miúdo de casal, com zelo para a fêmea. Tamoio, conforme ele, tinha o juízo voltado para as dissensões entre ricos e pobres. “Coisa de luta de classes! É invenção de quem só tem ódio na cabeça!”
Louise, corpo franzino, rosto desconfiado, opusera-se na defesa de sua escolha pessoal.
- É o homem que eu escolhi.
Nada disse a Tamoio, guardou para si o assédio, certa de que também os outros manteriam a conveniência.
Com o tempo, Agrário manteve-se à parte dos encontros. Conseguiu uma namorada para entreter os desígnios do sexo; mesmo sem a empatia para tornar o cruzamento duradouro. A cada dia, a união perdia fôlego; dir-se-ía uma relação perdendo forças à medida da prosperidade dos sentimentos entre Tamoio e Louise. Ele, Agrário, sentia-o assim. A namorada, vinte anos mais moça que ele, negra de beiços e nariz finos, distinguia no próprio corpo juntando-se à brancura do parelho, a garantia de uma aliança perene por conta da mistura de raças.
Prestes a deixá-la, inda que mantendo-se de seu lado para mostrar-se e até convencer-se de que, como todos, também tinha mulher com instinto de entrega, postou-se na esquina. Os dois numa conversa definhada, sob a luz mortiça do poste, encostados num muro. Tamoio surgiu na esquina da rua em cruzamento; do outro lado, andando rumo à padaria próxima, ouviu:
- Heil Hitler!
Não olhou para trás, embora ajuizando na provocação o propósito de desentranhar-lhe as veias; sobretudo as veias do pulmão esquerdo, por onde respirava adesão à luta de classes.
O céu, inda que estrelado, mostrou-se tão amargo quanto as paredes cobertas de musgo, no barroco mutilado da igreja ao lado da avenida. Na frente, um alpendre sem coberta, o padre tinha uma bíblia nas mãos; sobre as mãos, a enfiada de 165 contas gastas. O padre, com o rosto sereno, não tinha os sentidos nas lutas de classes. Agrário, indiferente a ruínas e preocupado com a sobrevivência do que supunha ser a pureza de sua cor, estribada numa conta bancária de seu pai, dirigiu-se ao padre.
- O senhor tem um comunista em sua paróquia...
O homem assustou-se, mesmo porque nunca entrevira nos choques entre filisteus e hebreus uma fogueira de interesses sociais incompatíveis; não, mesmo com o exercício diário de leitura do Velho Testamento.
- Faça um abaixo-assinado para tirá-lo daqui – insistiu Agrário.
- Não posso fazer isso.
- Pode. A comunidade vai lhe agradecer quando pedir as assinaturas, na frente do altar.
O padre sentara-se na amurada coberta de ladrilhos em volta do alpendre. Ainda com os olhos bem abertos para Agrário, viu ódio no seu propósito. Olhou para Tamoio, depois de Agrário tê-lo sob a mira dos dedos.
Tamoio vira o padre sentado. A batina preta, como um traje fascista em desfile numa avenida de Roma, sob o olhar severo de Mussolini, deixou-o meio que desamparado. A provocação de Agrário, pensou, dera-se com a cumplicidade e até a bênção tácita da sotaina.
O padre levantou-se, foi para a casa paroquial ali mesmo, na esquina de uma vila de casas conjugadas, de propriedade e da mesma alvenaria da igreja.
A namorada de Agrário, àquela altura com o cenho carregado de apreensão, puxou-o pelo braço.
Com o fim do verão, as chuvas deram a impressão de que também a estação contribuíra com uma trégua para Tamoio. Agrário se trancara em casa, abrigara-se com a namorada para certificar-se de que nas lutas de classes referidas por Tamoio, ele tinha um lugar de mando. Morando numa casa de empréstimo por um amigo, creu-se reconhecido no crédito decorrente do fato de ser filho do proprietário de um hotel. Hotel de porte médio, o suficiente para se crer membro inamovível de uma casta sem brasão, mas uma casta. O hotel, no distante bairro de Aldeia, tinha-o como hóspede ao fim de cada mês para embolsar uma mesada curta, dar-lhe a ilusão de que pelo resto da vida poderia viver sem trabalho.
Expulso da casa pelo dono, por não provê-la da manutenção na coberta, nas paredes, no piso e nas torneiras, foi morar com outro amigo; num apartamento de três quartos, frente à avenida principal, com trânsito intenso de ônibus em Olinda. A concessão o fez reiterar os votos de fidelidade ao brasão ilusório de família. Levou a namorada, certo de que a timidez dela separaria os dois sem o recurso a uma desculpa melosa. A manobra não deu certo, posto que o amigo, alegando despesas pessoais, convenceu-o da inconveniência de permanecer no apartamento.
Poderia morar com o pai, no hotel, mas a distância não o movia; acostumara-se, tornara-se dependente da rotina sem compromissos; e no hotel, mesmo sendo filho do dono, teria algum trabalho. Foi morar na própria casa, uma residência que construíra com o dinheiro da herança de sua mãe, morta há dois anos. A casa, em Olinda, distante da beira-mar e com paredes ainda nuas, sem reboco, murchou-o no intento de se acreditar com facilidades de ascensão social. Entediou-se, pôs fim ao namoro. Ocioso, incomodou-se com as regras na vida de Tamoio. Tamoio, afora a mulher que lhe assegurava a comunhão de ideias, recebia salário, frequentando com regularidade o restaurante olhando para o mar. Os garçons o atendiam com troca de conversa, feito uma retroalimentação.
Atraído pelo antagonismo entre o perfil de um e o de outro, Agrário foi ao mesmo restaurante onde Tamoio tornara-se freguês; sentou-se numa mesa na calçada. A bebida não o deixou tonto, mas ajudou-o no desvario de se atestar como pequeno-burguês cercado de respeito. Tanto respeito que, inquieto por não ouvir um cumprimento solícito, inda que de um estranho, achou-se no direito de olhar com insistência para o rosto de Louise; virando a cabeça, torcendo o pescoço. Até os garçons notaram, na rala frequência do fim da tarde de um sábado. Quando pagou a conta, ouviu do garçom o convite para voltar ao restaurante mais vezes. O convite, por certo, encheu-o de triunfo. Foi ao sanitário; na volta, disse ao garçom:
- Não se preocupe. Eu sou eleitor de Fernando Henrique, pertenço à elite e torço pelo Náutico!
O garçom riu.
Incitação fascista!- pensou Tamoio. Se o ódio de classe tivesse poderes de sumição, o tipo seria escorraçado para o outro lado do continente... Tamoio urdiu-se superior ao código do desafeto, desejando-lhe um fim tão trágico quanto o de Hitler, de Mussolini. Ainda mais porque já ouvira do próprio, a crença de que o Brasil só daria certo se fosse ocupado por tropas americanas.
Sexta-feira Santa. A multidão espremeu-se na estreiteza das ruas dos Quatro Cantos, rumo à Sé. O padre, ao lado do andor do Senhor Morto, era o mesmo que ouvira de Agrário a sugestão de abaixo-assinado. Conduzindo a procissão na Ladeira da Misericórdia, na frente de velhas rezadoras; todas com a cabeça coberta por véus pretos, roxos, a mesma cor da manta da imagem no andor. A ladeira pedregosa e inclinada exigia-lhes um esforço que não tinham, mas socorriam-se nos cânticos, nas contas do rosário. Os velhos não usavam paletó; inda que cobrindo os braços com camisas de mangas compridas, brancas, à moda de vida sem pecados.
Tamoio, avesso a cultos, cedera ao pedido de Louise, acompanhando-a. O casal se pusera atrás do andor, a pouco mais de dois metros do padre. No meio da ladeira, Agrário, usando bermuda e uma camisa de algodão azul, quase a mesma cor do traje do santo, avistou Tamoio e Louise. Em pé, na calçada, do lado direito do cortejo, tinha os olhos grogues. O coro sepulcral das velhas infundiu-lhe a convicção de que Tamoio, de calça jeans e camisa aberta na altura do tórax, era não só insólito quanto desrespeitoso à crença em Deus.
- Tem um comunista na procissão! – disse gritando, batendo no ombro do sacerdote.
Avançou para Tamoio, acertando-o no queixo com um soco. Tamoio caiu para trás. Agrário, sem sustança nas pernas, caiu sobre o inimigo. Duas velhas rolaram também. O guarda municipal acorreu; magro, comprido, tropeçou na saliência do calçamento. Tamoio, cuja repulsa a Agrário cresceu na absorção do álcool soprado por ele, conseguiu tirar o revólver da cintura do guarda; disparou, a menos de um palmo de distância, no peito do agressor. A multidão grita, corre para baixo da ladeira. O padre não correu para não perder a compostura; achegou-se do corpo, salpicou-o de água benta. Tamoio julgou que os olhos de Agrário se mexeram; antes que fechassem de vez, soprou em seu ouvido:
- Heil Hitler...
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
* Por Marco Albertim
O fio de sangue escorrendo do nariz juntou-se ao suor do rosto. Convinha removê-lo com o dorso da mão. Mas uma lágrima encorpada com o sal do suor, desceu rumo ao nariz; misturando-se ao sangue, deu vitalidade à pele rosada. Sentindo a trilha aberta entre os fios do bigode, removeu-a com ritmo agônico. Ainda lhe restavam forças, e a tremura nas mãos deu conta da mise-em-scéne, mesmo com o suor basto no rosto incendido.
Ele se levantara da mesa a uma distância de dois metros do outro. Com o violão, sentara-se vizinho, inda que de costas, à mulher de seu desafeto. Pusera-se a tocar umas notas de pungência fingida. O desafeto, espreitando-o, trocara de lugar com a mulher; também bebera, e seu gesto mostrou-o tão incomodado quanto hostil. Agrário distinguiu a chance de se tornar vítima:
- Pare com isso... Acabe com isso...
Não houve tempo para pôr o logro a descoberto. Tamoio, chispando nas ventas, disparou um soco no nariz de Agrário; recebeu outro de volta e caiu, inda que deixando a hemorragia numa das narinas de Agrário.
A briga teve fim com a interferência dos outros. Tamoio, com a mulher e um amigo, seguiu para outro restaurante. Não tinha mais fome, e bebeu dois copos de cerveja para manter o ríctus.
Agrário manteve-se no mesmo lugar, com o violão de lado. Desfiou um choro forçado, auxiliado pela bebida; não sentia dor, mas falou de modo a se mostrar quão compungido ficara com a reação hostil de Tamoio. Se, de suas entranhas, o mínimo de pesar o prostrava, era por ter sido também ele o agressor aos olhos da mulher do outro.
Noutro tempo, antes das estocadas, dos sopapos, confessara o interesse por Louise; confessara a ela, na frente dos amigos dos dois, e do próprio Tamoio, distraído noutras conversas. Comparou-se com o outro, sopesando-se num conchego miúdo de casal, com zelo para a fêmea. Tamoio, conforme ele, tinha o juízo voltado para as dissensões entre ricos e pobres. “Coisa de luta de classes! É invenção de quem só tem ódio na cabeça!”
Louise, corpo franzino, rosto desconfiado, opusera-se na defesa de sua escolha pessoal.
- É o homem que eu escolhi.
Nada disse a Tamoio, guardou para si o assédio, certa de que também os outros manteriam a conveniência.
Com o tempo, Agrário manteve-se à parte dos encontros. Conseguiu uma namorada para entreter os desígnios do sexo; mesmo sem a empatia para tornar o cruzamento duradouro. A cada dia, a união perdia fôlego; dir-se-ía uma relação perdendo forças à medida da prosperidade dos sentimentos entre Tamoio e Louise. Ele, Agrário, sentia-o assim. A namorada, vinte anos mais moça que ele, negra de beiços e nariz finos, distinguia no próprio corpo juntando-se à brancura do parelho, a garantia de uma aliança perene por conta da mistura de raças.
Prestes a deixá-la, inda que mantendo-se de seu lado para mostrar-se e até convencer-se de que, como todos, também tinha mulher com instinto de entrega, postou-se na esquina. Os dois numa conversa definhada, sob a luz mortiça do poste, encostados num muro. Tamoio surgiu na esquina da rua em cruzamento; do outro lado, andando rumo à padaria próxima, ouviu:
- Heil Hitler!
Não olhou para trás, embora ajuizando na provocação o propósito de desentranhar-lhe as veias; sobretudo as veias do pulmão esquerdo, por onde respirava adesão à luta de classes.
O céu, inda que estrelado, mostrou-se tão amargo quanto as paredes cobertas de musgo, no barroco mutilado da igreja ao lado da avenida. Na frente, um alpendre sem coberta, o padre tinha uma bíblia nas mãos; sobre as mãos, a enfiada de 165 contas gastas. O padre, com o rosto sereno, não tinha os sentidos nas lutas de classes. Agrário, indiferente a ruínas e preocupado com a sobrevivência do que supunha ser a pureza de sua cor, estribada numa conta bancária de seu pai, dirigiu-se ao padre.
- O senhor tem um comunista em sua paróquia...
O homem assustou-se, mesmo porque nunca entrevira nos choques entre filisteus e hebreus uma fogueira de interesses sociais incompatíveis; não, mesmo com o exercício diário de leitura do Velho Testamento.
- Faça um abaixo-assinado para tirá-lo daqui – insistiu Agrário.
- Não posso fazer isso.
- Pode. A comunidade vai lhe agradecer quando pedir as assinaturas, na frente do altar.
O padre sentara-se na amurada coberta de ladrilhos em volta do alpendre. Ainda com os olhos bem abertos para Agrário, viu ódio no seu propósito. Olhou para Tamoio, depois de Agrário tê-lo sob a mira dos dedos.
Tamoio vira o padre sentado. A batina preta, como um traje fascista em desfile numa avenida de Roma, sob o olhar severo de Mussolini, deixou-o meio que desamparado. A provocação de Agrário, pensou, dera-se com a cumplicidade e até a bênção tácita da sotaina.
O padre levantou-se, foi para a casa paroquial ali mesmo, na esquina de uma vila de casas conjugadas, de propriedade e da mesma alvenaria da igreja.
A namorada de Agrário, àquela altura com o cenho carregado de apreensão, puxou-o pelo braço.
Com o fim do verão, as chuvas deram a impressão de que também a estação contribuíra com uma trégua para Tamoio. Agrário se trancara em casa, abrigara-se com a namorada para certificar-se de que nas lutas de classes referidas por Tamoio, ele tinha um lugar de mando. Morando numa casa de empréstimo por um amigo, creu-se reconhecido no crédito decorrente do fato de ser filho do proprietário de um hotel. Hotel de porte médio, o suficiente para se crer membro inamovível de uma casta sem brasão, mas uma casta. O hotel, no distante bairro de Aldeia, tinha-o como hóspede ao fim de cada mês para embolsar uma mesada curta, dar-lhe a ilusão de que pelo resto da vida poderia viver sem trabalho.
Expulso da casa pelo dono, por não provê-la da manutenção na coberta, nas paredes, no piso e nas torneiras, foi morar com outro amigo; num apartamento de três quartos, frente à avenida principal, com trânsito intenso de ônibus em Olinda. A concessão o fez reiterar os votos de fidelidade ao brasão ilusório de família. Levou a namorada, certo de que a timidez dela separaria os dois sem o recurso a uma desculpa melosa. A manobra não deu certo, posto que o amigo, alegando despesas pessoais, convenceu-o da inconveniência de permanecer no apartamento.
Poderia morar com o pai, no hotel, mas a distância não o movia; acostumara-se, tornara-se dependente da rotina sem compromissos; e no hotel, mesmo sendo filho do dono, teria algum trabalho. Foi morar na própria casa, uma residência que construíra com o dinheiro da herança de sua mãe, morta há dois anos. A casa, em Olinda, distante da beira-mar e com paredes ainda nuas, sem reboco, murchou-o no intento de se acreditar com facilidades de ascensão social. Entediou-se, pôs fim ao namoro. Ocioso, incomodou-se com as regras na vida de Tamoio. Tamoio, afora a mulher que lhe assegurava a comunhão de ideias, recebia salário, frequentando com regularidade o restaurante olhando para o mar. Os garçons o atendiam com troca de conversa, feito uma retroalimentação.
Atraído pelo antagonismo entre o perfil de um e o de outro, Agrário foi ao mesmo restaurante onde Tamoio tornara-se freguês; sentou-se numa mesa na calçada. A bebida não o deixou tonto, mas ajudou-o no desvario de se atestar como pequeno-burguês cercado de respeito. Tanto respeito que, inquieto por não ouvir um cumprimento solícito, inda que de um estranho, achou-se no direito de olhar com insistência para o rosto de Louise; virando a cabeça, torcendo o pescoço. Até os garçons notaram, na rala frequência do fim da tarde de um sábado. Quando pagou a conta, ouviu do garçom o convite para voltar ao restaurante mais vezes. O convite, por certo, encheu-o de triunfo. Foi ao sanitário; na volta, disse ao garçom:
- Não se preocupe. Eu sou eleitor de Fernando Henrique, pertenço à elite e torço pelo Náutico!
O garçom riu.
Incitação fascista!- pensou Tamoio. Se o ódio de classe tivesse poderes de sumição, o tipo seria escorraçado para o outro lado do continente... Tamoio urdiu-se superior ao código do desafeto, desejando-lhe um fim tão trágico quanto o de Hitler, de Mussolini. Ainda mais porque já ouvira do próprio, a crença de que o Brasil só daria certo se fosse ocupado por tropas americanas.
Sexta-feira Santa. A multidão espremeu-se na estreiteza das ruas dos Quatro Cantos, rumo à Sé. O padre, ao lado do andor do Senhor Morto, era o mesmo que ouvira de Agrário a sugestão de abaixo-assinado. Conduzindo a procissão na Ladeira da Misericórdia, na frente de velhas rezadoras; todas com a cabeça coberta por véus pretos, roxos, a mesma cor da manta da imagem no andor. A ladeira pedregosa e inclinada exigia-lhes um esforço que não tinham, mas socorriam-se nos cânticos, nas contas do rosário. Os velhos não usavam paletó; inda que cobrindo os braços com camisas de mangas compridas, brancas, à moda de vida sem pecados.
Tamoio, avesso a cultos, cedera ao pedido de Louise, acompanhando-a. O casal se pusera atrás do andor, a pouco mais de dois metros do padre. No meio da ladeira, Agrário, usando bermuda e uma camisa de algodão azul, quase a mesma cor do traje do santo, avistou Tamoio e Louise. Em pé, na calçada, do lado direito do cortejo, tinha os olhos grogues. O coro sepulcral das velhas infundiu-lhe a convicção de que Tamoio, de calça jeans e camisa aberta na altura do tórax, era não só insólito quanto desrespeitoso à crença em Deus.
- Tem um comunista na procissão! – disse gritando, batendo no ombro do sacerdote.
Avançou para Tamoio, acertando-o no queixo com um soco. Tamoio caiu para trás. Agrário, sem sustança nas pernas, caiu sobre o inimigo. Duas velhas rolaram também. O guarda municipal acorreu; magro, comprido, tropeçou na saliência do calçamento. Tamoio, cuja repulsa a Agrário cresceu na absorção do álcool soprado por ele, conseguiu tirar o revólver da cintura do guarda; disparou, a menos de um palmo de distância, no peito do agressor. A multidão grita, corre para baixo da ladeira. O padre não correu para não perder a compostura; achegou-se do corpo, salpicou-o de água benta. Tamoio julgou que os olhos de Agrário se mexeram; antes que fechassem de vez, soprou em seu ouvido:
- Heil Hitler...
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
Interessante a forma como absorvi
ResponderExcluiro fel destilado pelas personagens.
Ótimo texto.
Abraços