Ética e política
O ativista anti-apartheid sul-africano Steve Biko, que morreu assassinado em uma prisão de seu país em mãos da polícia racista branca, afirmou, em certa ocasião, em uma entrevista, quando lhe perguntaram por que se empenhava tanto numa missão que então era tida como absolutamente impossível, que era a de criar uma democracia multirracial na África do Sul: "Se você mudar a forma de as pessoas pensarem, as coisas nunca mais serão as mesmas".
Pena que não viveu para ver o resultado de sua pregação. Não pôde assistir ao milagre, a redenção dos negros do seu país. Não viu a magnífica vitória nas urnas do Congresso Nacional Africano. Não presenciou a miraculosa trajetória de seu ídolo e mito, Nelson Mandela, do cárcere para a Presidência. Mas foi, em grande parte, responsável por esses fatos miraculosos. Ajudou as pessoas do seu país a mudarem sua forma de pensar. E as coisas, na África do Sul, nunca mais serão as mesmas... Para o bem ou para o mal...
Podemos, no Brasil, realizar o mesmo "milagre". Não faremos isso, evidentemente, esperando que as coisas aconteçam à nossa revelia. Temos que nos transformar de meros espectadores passivos, em agentes das mudanças.Todos ficamos chocados, e revoltados, com a corrupção instalada à sombra do poder. Revestimo-nos de justa e santa ira diante de indecentes negociatas, de criminosas roubalheiras. Principalmente quando sabemos que esse dinheiro surrupiado foi o dos nossos suados impostos. E que se destinava a financiar a fundamental educação, a indispensável saúde, a estratégica assistência social, a básica segurança pública: num País tão repleto, ainda, de analfabetos ou semi-alfabetizados, de doentes, de miseráveis e de marginais.
Exercitamos, posto que passivamente, nosso senso ético. Todavia, salvo raras e honrosas exceções, abrimos mão do exercício da cidadania. De nada vale a emoção sem a correspondente ação. Na ausência de uma pressão adequada disso que é chamado de "Opinião Pública", a maioria dos infratores sai rindo da população.
Muitos, quando abordados a respeito do que acontece nos centros do poder, desconversam e sentenciam: "não gosto e não entendo de política". Pode até ser. Mas tais pessoas confessam, então, não entender os próprios atos que praticam no seu cotidiano. Admitem não compreender o que fazem todos os dias, desde o momento em que acordam, até que se deitam.
"Política" é todo o ato que praticamos na "pólis", na cidade. Quando pela manhã, cumprimentamos nosso vizinho, quando pagamos nossa passagem no ônibus, quando assistimos a uma aula, quando realizamos o nosso trabalho, quando saldamos uma conta no banco ou no caixa de uma loja, quando efetuamos uma compra ou venda no comércio, quando gozamos o nosso lazer, estamos fazendo esse exercício que apregoamos "não entender e não gostar". Gostemos de fato ou não dele. Entendamos ou não de política. Tenhamos ou não consciência disso.
O outro conceito da nossa reflexão de hoje é ética. É necessário defini-lo e diferenciá-lo de moral, de virtude e de direito. Para isso, recorro a alguns pensadores, muito mais aptos do que eu para fixar com clareza e propriedade esses princípios. O escritor Guilherme de Figueiredo, autor do bem-humorado e inteligente livro "Tratado Universal do Chato", explica o que significa essa palavra, tão utilizada, mas pouco compreendida:
"A ética é a observação e todo o caldo de cultura da tribo humana. Pode variar em latitudes, em temperaturas, em paisagens, em tudo: as éticas estão lá, registrando a uns que não se deve andar com o sexo à mostra, a outros que a sociedade condena o furto, a outros que é proibido comer carne humana".
Ao contrário da moral, que é uma ciência normativa, não impõe nada ao indivíduo. É uma disciplina meramente especulativa. Estuda a ação e a conduta do homem, procurando a justificação racional dos juízos de valor. Ou seja, dos nossos julgamentos de certo e errado. Distingue-se, igualmente, do estudo dos costumes, que é do âmbito da sociologia e que se limita a descrever o modo de agir de um grupo humano num determinado tempo ou época.
Para o professor da Universidade de São Paulo, Eduardo Gianetti da Fonseca, "a ética é um filtro. Ela existe para impedir, em alguma medida, que aquilo que nos acontece espontaneamente – o sentimento agudo de medo numa situação de perigo por exemplo – determine sem mediação aquilo que faremos ao agir no mundo. A ética opera como um filtro que modela e modera o apelo dos estados mentais em relação aos quais somos passivos, de modo a atenuar seu poder sobre nossas ações – por exemplo, impedindo que numa situação de perigo coletivo, cada um se entregue cegamente ao impulso de sobrevivência".
O pensador francês Giles Lipovetsky aclara um pouco mais este complexo conceito. Ensina que "a ética se mostra menos preocupada com intenções puras do que com resultados benéficos para o homem, que não exige heroísmo nem altruísmo, mas o espírito de responsabilidade e compromisso razoáveis".
E o filósofo francês Jacques Duquesnes estabelece a principal diferença entre o senso ético e o de moralidade: "A ética não tem obrigação e nem punição, é menos dolorosa do que a moral". Depende, portanto, da consciência, que advém da educação. Esta última é a palavra-chave, a verdadeira raiz dos problemas do País. Nosso povo, em sua massacrante maioria, ou não é educado ou o é de forma equivocada. Daí a atual inversão de valores.
Vivemos em uma sociedade em que moral é algo encarado como "quadrado", "careta" e outras designações muito mais contundentes. Moralismo, hoje em dia, é visto como defeito, como sinônimo de chatice, que tudo proíbe. Este período é caracterizado essencialmente pelo "libera geral", pela decadência dos costumes, pela irresponsável e catastrófica permissividade.
Há lei? Vamos burlá-la! Existe impedimento moral para determinado ato, como lesar nosso semelhante menos esclarecido numa transação qualquer? Mostremos nossa esperteza! Busquemos levar vantagem em tudo! Com essa mentalidade predominando no dia a dia, podemos condenar um deputado, ou um senador, que manipula o Orçamento da União para desviar polpudas importâncias para sua conta corrente particular? Não seria uma incongruência? Afinal, esse ato lesivo aos cofres públicos é manifestação de "esperteza" pelos parâmetros comportamentais implícitos, vigentes na sociedade. Os políticos profissionais, queiram ou não, refletem o comportamento da comunidade de onde emergem e à qual representam.
São frutos da sua falta de consciência sobre o certo e o errado, sobre o bem e o mal. É dessa forma errada de pensar que Steve Biko falava. Se a mudarmos, e essa mudança tem que começar individualmente, em cada um de nós, as coisas nunca mais serão as mesmas.
Tão aético quanto manipular o Orçamento da União é transacionar o voto. É trocá-lo por promessa de emprego para si ou para parentes. É violentar a própria consciência e votar em alguém a troco de dinheiro, cesta básica ou qualquer outra vantagem, material ou não.
Tão aético quanto um deputado ou senador aumentar o próprio salário, quando os dos demais trabalhadores estiverem achatados ou congelados, é o cidadão sonegar seus impostos. Não há corruptos sem os respectivos corruptores. Isto é para lá de óbvio, mas muitos parecem não entender.
Não quero me alongar mais nestas considerações. Encerro, pois, estas breves reflexões com uma declaração do poeta Affonso Romano de Sant'Anna que reflete bem o comportamento do ser humano em todos os tempos, que diz: "Assim se faz a história: com a agressividade de poucos, com a ingenuidade de muitos e a dialética dos tolos".
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
O ativista anti-apartheid sul-africano Steve Biko, que morreu assassinado em uma prisão de seu país em mãos da polícia racista branca, afirmou, em certa ocasião, em uma entrevista, quando lhe perguntaram por que se empenhava tanto numa missão que então era tida como absolutamente impossível, que era a de criar uma democracia multirracial na África do Sul: "Se você mudar a forma de as pessoas pensarem, as coisas nunca mais serão as mesmas".
Pena que não viveu para ver o resultado de sua pregação. Não pôde assistir ao milagre, a redenção dos negros do seu país. Não viu a magnífica vitória nas urnas do Congresso Nacional Africano. Não presenciou a miraculosa trajetória de seu ídolo e mito, Nelson Mandela, do cárcere para a Presidência. Mas foi, em grande parte, responsável por esses fatos miraculosos. Ajudou as pessoas do seu país a mudarem sua forma de pensar. E as coisas, na África do Sul, nunca mais serão as mesmas... Para o bem ou para o mal...
Podemos, no Brasil, realizar o mesmo "milagre". Não faremos isso, evidentemente, esperando que as coisas aconteçam à nossa revelia. Temos que nos transformar de meros espectadores passivos, em agentes das mudanças.Todos ficamos chocados, e revoltados, com a corrupção instalada à sombra do poder. Revestimo-nos de justa e santa ira diante de indecentes negociatas, de criminosas roubalheiras. Principalmente quando sabemos que esse dinheiro surrupiado foi o dos nossos suados impostos. E que se destinava a financiar a fundamental educação, a indispensável saúde, a estratégica assistência social, a básica segurança pública: num País tão repleto, ainda, de analfabetos ou semi-alfabetizados, de doentes, de miseráveis e de marginais.
Exercitamos, posto que passivamente, nosso senso ético. Todavia, salvo raras e honrosas exceções, abrimos mão do exercício da cidadania. De nada vale a emoção sem a correspondente ação. Na ausência de uma pressão adequada disso que é chamado de "Opinião Pública", a maioria dos infratores sai rindo da população.
Muitos, quando abordados a respeito do que acontece nos centros do poder, desconversam e sentenciam: "não gosto e não entendo de política". Pode até ser. Mas tais pessoas confessam, então, não entender os próprios atos que praticam no seu cotidiano. Admitem não compreender o que fazem todos os dias, desde o momento em que acordam, até que se deitam.
"Política" é todo o ato que praticamos na "pólis", na cidade. Quando pela manhã, cumprimentamos nosso vizinho, quando pagamos nossa passagem no ônibus, quando assistimos a uma aula, quando realizamos o nosso trabalho, quando saldamos uma conta no banco ou no caixa de uma loja, quando efetuamos uma compra ou venda no comércio, quando gozamos o nosso lazer, estamos fazendo esse exercício que apregoamos "não entender e não gostar". Gostemos de fato ou não dele. Entendamos ou não de política. Tenhamos ou não consciência disso.
O outro conceito da nossa reflexão de hoje é ética. É necessário defini-lo e diferenciá-lo de moral, de virtude e de direito. Para isso, recorro a alguns pensadores, muito mais aptos do que eu para fixar com clareza e propriedade esses princípios. O escritor Guilherme de Figueiredo, autor do bem-humorado e inteligente livro "Tratado Universal do Chato", explica o que significa essa palavra, tão utilizada, mas pouco compreendida:
"A ética é a observação e todo o caldo de cultura da tribo humana. Pode variar em latitudes, em temperaturas, em paisagens, em tudo: as éticas estão lá, registrando a uns que não se deve andar com o sexo à mostra, a outros que a sociedade condena o furto, a outros que é proibido comer carne humana".
Ao contrário da moral, que é uma ciência normativa, não impõe nada ao indivíduo. É uma disciplina meramente especulativa. Estuda a ação e a conduta do homem, procurando a justificação racional dos juízos de valor. Ou seja, dos nossos julgamentos de certo e errado. Distingue-se, igualmente, do estudo dos costumes, que é do âmbito da sociologia e que se limita a descrever o modo de agir de um grupo humano num determinado tempo ou época.
Para o professor da Universidade de São Paulo, Eduardo Gianetti da Fonseca, "a ética é um filtro. Ela existe para impedir, em alguma medida, que aquilo que nos acontece espontaneamente – o sentimento agudo de medo numa situação de perigo por exemplo – determine sem mediação aquilo que faremos ao agir no mundo. A ética opera como um filtro que modela e modera o apelo dos estados mentais em relação aos quais somos passivos, de modo a atenuar seu poder sobre nossas ações – por exemplo, impedindo que numa situação de perigo coletivo, cada um se entregue cegamente ao impulso de sobrevivência".
O pensador francês Giles Lipovetsky aclara um pouco mais este complexo conceito. Ensina que "a ética se mostra menos preocupada com intenções puras do que com resultados benéficos para o homem, que não exige heroísmo nem altruísmo, mas o espírito de responsabilidade e compromisso razoáveis".
E o filósofo francês Jacques Duquesnes estabelece a principal diferença entre o senso ético e o de moralidade: "A ética não tem obrigação e nem punição, é menos dolorosa do que a moral". Depende, portanto, da consciência, que advém da educação. Esta última é a palavra-chave, a verdadeira raiz dos problemas do País. Nosso povo, em sua massacrante maioria, ou não é educado ou o é de forma equivocada. Daí a atual inversão de valores.
Vivemos em uma sociedade em que moral é algo encarado como "quadrado", "careta" e outras designações muito mais contundentes. Moralismo, hoje em dia, é visto como defeito, como sinônimo de chatice, que tudo proíbe. Este período é caracterizado essencialmente pelo "libera geral", pela decadência dos costumes, pela irresponsável e catastrófica permissividade.
Há lei? Vamos burlá-la! Existe impedimento moral para determinado ato, como lesar nosso semelhante menos esclarecido numa transação qualquer? Mostremos nossa esperteza! Busquemos levar vantagem em tudo! Com essa mentalidade predominando no dia a dia, podemos condenar um deputado, ou um senador, que manipula o Orçamento da União para desviar polpudas importâncias para sua conta corrente particular? Não seria uma incongruência? Afinal, esse ato lesivo aos cofres públicos é manifestação de "esperteza" pelos parâmetros comportamentais implícitos, vigentes na sociedade. Os políticos profissionais, queiram ou não, refletem o comportamento da comunidade de onde emergem e à qual representam.
São frutos da sua falta de consciência sobre o certo e o errado, sobre o bem e o mal. É dessa forma errada de pensar que Steve Biko falava. Se a mudarmos, e essa mudança tem que começar individualmente, em cada um de nós, as coisas nunca mais serão as mesmas.
Tão aético quanto manipular o Orçamento da União é transacionar o voto. É trocá-lo por promessa de emprego para si ou para parentes. É violentar a própria consciência e votar em alguém a troco de dinheiro, cesta básica ou qualquer outra vantagem, material ou não.
Tão aético quanto um deputado ou senador aumentar o próprio salário, quando os dos demais trabalhadores estiverem achatados ou congelados, é o cidadão sonegar seus impostos. Não há corruptos sem os respectivos corruptores. Isto é para lá de óbvio, mas muitos parecem não entender.
Não quero me alongar mais nestas considerações. Encerro, pois, estas breves reflexões com uma declaração do poeta Affonso Romano de Sant'Anna que reflete bem o comportamento do ser humano em todos os tempos, que diz: "Assim se faz a história: com a agressividade de poucos, com a ingenuidade de muitos e a dialética dos tolos".
Boa leitura.
O Editor.
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No final acabamos nos inserindo um pouco em cada um desses três grupos finais. Em algumas medidas e certas situações,acabamos nos mostrando agressivos, ingênuos e tolos.
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