Severino e a calibrina
* Por Lêda Selma
Desde cedo, o moleque Severino já praticava suas severinices. A cabeça, naturalmente chata, acomodava chatices e traquinices que deixavam mãinha fulamente severina e com os cabelos em posição de alerta. E aos vizinhos, costumava desabafar: “Arre, ema, que sujeitim mais espoleta! Pra certas coisas é ronceiro que só; pra outras, mais acelerado que ventania. E gosta de um arerê que só vendo; sim, não perde uma única oportunidade de se meter em trapalhadas”. É, coração de mãe é sábio...
Também, desde pequeno, já se mostrava falastrão e com tendências a esconder as estripulias de seus iguais. Por isso, não tardou nada, foi eleito Presidente da Câmara dos Estudantes de um grupo escolar qualquer do nordeste. E foi, então, que aprimorou seu talento para o esconde-abafa. Um paninho quente, aqui, para esconder a safadeza de um colega; uma peneira, ali, pra tapar o sol, caso um amigo cometesse certa esperteza; um deixa disso, acolá, se algum aluno faltasse com o decoro escolar... E, assim, aos poucos, o menino viu encorpar-se sua fama de protetor dos mais favorecidos, ou seja, dos mais favorecidos na arte de negacear, de trapacear, de avantajar-se em tudo. Bastava um estudante propinar (com vistas a uma nota melhor) e olha Severino tentando salvá-lo da punição. Se um outro mensalasse (por um abono de faltas), o garoto Severino agia em sua defesa. Maracatu, isto é, maracutaia, era com ele. E tudo terminava, sempre, em sarapatel, buchada ou chouriço.
Já na adolescência, o menino começou a se preocupar com o futuro. Ser ou não ser (político) era a questão. Sentia que levava jeito para o ofício. Afinal, tinha aquele traquejo tão providencial em determinadas situações; sabia engambelar qualquer um com notória maestria; não se importava com o que diziam, mas com o que fazia. Portanto, talento não lhe faltava. Nem ocasião para demonstrá-lo. A mãe, entretanto, preferia que o filho seguisse os passos de “Padim Ciço”; a avó, os de Luiz Gonzaga; os antigos colegas de grupo escolar viam-no como líder político e os mais afoitos até se lembraram de Lampião, cabra retado e símbolo da coragem nordestina. A tia-avó queria-o comerciante. E estava certa. Parênteses para explicar o porquê: o moço já havia exibido sua aptidão para o ramo, enquanto auxiliava o pai no armazém “De tudo um pouco”, anotando na caderneta as compras “no fiado”. Certo dia, um impasse: foram vendidos uns arreios e, por distração, o rapaz esqueceu de nomear o comprador. Mas a solução veio a galope: “debito no nome de todos os devedores do mês, que são mais de cem, e pronto! Se algum reclamar, peço desculpas pelo equívoco; assim, pego o devedor e, de gorja, os que, por constrangimento ou distração, não reclamarem. Um lucrão!”.
Severino, ainda na juventude, afeiçoou-se à calibrina, a famosa água-que-anjo-enjeita (embora já os santos, por tradição, contem sempre com a costumeira dose). E, por falar na tal, à cachaça nordestina, a depender de seu pedigri, Severino sempre impingia as mais jocosas alcunhas: “magrela”; “sensitiva”; “CPI”; “fuxiqueira”; “dadivosa”; “propina”; “desgoelada”; “sirigaita”; “mensalona”; “falcatrua”; “habeas corpus”... enfim, um arsenal de apelidos. Eh, Severino boquirroto, gente!
Festeiro por herança paterna, de certa feita, Severino acompanhou uns amigos a uma festa. Muita moça bonita, foguetório, políticos, comedeira (também no sentido de comilança) e a infalível calibrina. Ih! Severino estava feito! E que o estoque fosse gorducho! Afinal, talagadas e talagadas nunca foram suficientes para arriar Severino. Bom de copo, o moço esvaziava quantos lhe apetecessem. Naquele dia, entretanto, algo deixou-o intrigado. Ainda na terceira dose, de repente, começou a ver a cantora triplicada. Desentendido e encabulado, falou ao amigo mais próximo:
– Tô acabado, cabra! Mal comecei a beber, já vejo a moça xerocopiada, oxente!
– Calma, esse-menino! Que desassossego mais retado! Tu é mesmo o rei das trapalhadas! Num tem triplicação nenhuma, homem..
– Não?! Como não, se estou vendo três cantoras...
– É que as tais são trigêmeas, oxe!
• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.
* Por Lêda Selma
Desde cedo, o moleque Severino já praticava suas severinices. A cabeça, naturalmente chata, acomodava chatices e traquinices que deixavam mãinha fulamente severina e com os cabelos em posição de alerta. E aos vizinhos, costumava desabafar: “Arre, ema, que sujeitim mais espoleta! Pra certas coisas é ronceiro que só; pra outras, mais acelerado que ventania. E gosta de um arerê que só vendo; sim, não perde uma única oportunidade de se meter em trapalhadas”. É, coração de mãe é sábio...
Também, desde pequeno, já se mostrava falastrão e com tendências a esconder as estripulias de seus iguais. Por isso, não tardou nada, foi eleito Presidente da Câmara dos Estudantes de um grupo escolar qualquer do nordeste. E foi, então, que aprimorou seu talento para o esconde-abafa. Um paninho quente, aqui, para esconder a safadeza de um colega; uma peneira, ali, pra tapar o sol, caso um amigo cometesse certa esperteza; um deixa disso, acolá, se algum aluno faltasse com o decoro escolar... E, assim, aos poucos, o menino viu encorpar-se sua fama de protetor dos mais favorecidos, ou seja, dos mais favorecidos na arte de negacear, de trapacear, de avantajar-se em tudo. Bastava um estudante propinar (com vistas a uma nota melhor) e olha Severino tentando salvá-lo da punição. Se um outro mensalasse (por um abono de faltas), o garoto Severino agia em sua defesa. Maracatu, isto é, maracutaia, era com ele. E tudo terminava, sempre, em sarapatel, buchada ou chouriço.
Já na adolescência, o menino começou a se preocupar com o futuro. Ser ou não ser (político) era a questão. Sentia que levava jeito para o ofício. Afinal, tinha aquele traquejo tão providencial em determinadas situações; sabia engambelar qualquer um com notória maestria; não se importava com o que diziam, mas com o que fazia. Portanto, talento não lhe faltava. Nem ocasião para demonstrá-lo. A mãe, entretanto, preferia que o filho seguisse os passos de “Padim Ciço”; a avó, os de Luiz Gonzaga; os antigos colegas de grupo escolar viam-no como líder político e os mais afoitos até se lembraram de Lampião, cabra retado e símbolo da coragem nordestina. A tia-avó queria-o comerciante. E estava certa. Parênteses para explicar o porquê: o moço já havia exibido sua aptidão para o ramo, enquanto auxiliava o pai no armazém “De tudo um pouco”, anotando na caderneta as compras “no fiado”. Certo dia, um impasse: foram vendidos uns arreios e, por distração, o rapaz esqueceu de nomear o comprador. Mas a solução veio a galope: “debito no nome de todos os devedores do mês, que são mais de cem, e pronto! Se algum reclamar, peço desculpas pelo equívoco; assim, pego o devedor e, de gorja, os que, por constrangimento ou distração, não reclamarem. Um lucrão!”.
Severino, ainda na juventude, afeiçoou-se à calibrina, a famosa água-que-anjo-enjeita (embora já os santos, por tradição, contem sempre com a costumeira dose). E, por falar na tal, à cachaça nordestina, a depender de seu pedigri, Severino sempre impingia as mais jocosas alcunhas: “magrela”; “sensitiva”; “CPI”; “fuxiqueira”; “dadivosa”; “propina”; “desgoelada”; “sirigaita”; “mensalona”; “falcatrua”; “habeas corpus”... enfim, um arsenal de apelidos. Eh, Severino boquirroto, gente!
Festeiro por herança paterna, de certa feita, Severino acompanhou uns amigos a uma festa. Muita moça bonita, foguetório, políticos, comedeira (também no sentido de comilança) e a infalível calibrina. Ih! Severino estava feito! E que o estoque fosse gorducho! Afinal, talagadas e talagadas nunca foram suficientes para arriar Severino. Bom de copo, o moço esvaziava quantos lhe apetecessem. Naquele dia, entretanto, algo deixou-o intrigado. Ainda na terceira dose, de repente, começou a ver a cantora triplicada. Desentendido e encabulado, falou ao amigo mais próximo:
– Tô acabado, cabra! Mal comecei a beber, já vejo a moça xerocopiada, oxente!
– Calma, esse-menino! Que desassossego mais retado! Tu é mesmo o rei das trapalhadas! Num tem triplicação nenhuma, homem..
– Não?! Como não, se estou vendo três cantoras...
– É que as tais são trigêmeas, oxe!
• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.
Esse menino vai longe!
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