sábado, 26 de novembro de 2011







Tocopilla

* Por Urda Alice Klueger

(Excerto do livro “Viagem ao Umbigo do Mundo”, publicado em 2006)


Naquele lugar havia um encontro impressionante: o deserto e o oceano! Por muitas horas, no dia seguinte, eu poderia observar tal encontro – naquele momento e naquele lugar ficava mais difícil de ver, porque a pequena cidade de Tocopilla roubava a cena, fazia com que a gente concentrasse as atenções nela.
Bem, se estamos num deserto totalmente seco, sem a menor fertilidade, para que haja vida, gente, cidade, é necessário que haja água, e se há água, a coisa acaba virando oásis. Tanto a cidade de Tocopilla, quanto São Pedro de Atacama e as demais cidades que veríamos nos dias seguintes existiam porque havia um oásis, se bem que até agora acho que o oásis onde existia Tocopilla fora criado pela mão do homem – pelo menos me contaram lá que a água doce ali existente era canalizada desde uma distância de 150 quilômetros. Nesse soberbo continente onde vivemos tudo é possível, e então não duvidei nada quando me contaram tal coisa. Na verdade, era necessário que aquela cidade existisse, ali – por que o homem não teria ido buscar água doce a 150 quilômetros para fazer um oásis, já que a natureza, ali, fornecia um dos raros portos da costa rochosa do Norte do Chile? O porto era necessário – não passáramos mais para trás pela mina imensa, onde havia uma estrada de ferro inteira, só para carregar o minério de cobre quase que inexaurível? Quando passáramos pela mina eu não pensara aonde aquela estrada de ferro poderia ir, para descarregar todo aquele minério. Agora a coisa estava na minha frente: alinhados no porto, os navios esperavam de goela aberta para levar embora todo aquele minério Pacífico afora, para ser fundido e industrializado lá do outro lado do mar – pelas minhas contas, nos Estados Unidos ou talvez em outros países onde o Capital pudesse explorar com tranquilidade a mão de obra barata. Não fica minério nenhum para o Chile industrializar no seu próprio solo, gerar riqueza para si próprio, gerar empregos. Os empregos gerados por aquela abundante loucura de cobre são apenas os da mão de obra barata, o das pessoas que trabalham por qualquer salário porque precisam comer, os extrativistas que carregam os trens e os navios. Claro, há alguns engenheiros e chefes, que estão mais para cima na pirâmide social, mas que devem representar um percentual mínimo na totalidade da população. A história é quase sempre a mesma.
Mas então já era fim da tarde, e descemos a encosta da última elevação antes de nos dirigirmos para Tocopilla, e a pequena cidade estava ali, toda bonitinha, com ajardinamento e palmeiras nas ruas, embora ao seu redor, tirando o lado que era o mar, só houvesse a secura das montanhas coloridas do deserto. O porto dava na vista, e sobranceiro a ele, numa encosta, estavam lá as casas dos ingleses que um dia foram os donos da América, naquele período intermediário entre o tempo em que a América pertencia aos portugueses e espanhóis e o período atual, quando ela pertence aos Estados Unidos. Tinham vivido bem os ingleses, nas suas casas avarandadas e com belíssimas vistas, assim lá no alto! Era inconfundível sua arquitetura, e eu cheguei a vê-los na minha imaginação, de ternos brancos e chapéus Panamá, rodando suas bengalas de castão de prata ali pelas ruas próximas do porto! Não reparem, é coisa de escritora.
O que não era coisa de escritora nem de imaginação eram os grandes canhões na montanha sobranceira ao porto, e achei que estavam ali talvez por causa da comprida briga de Chile e Argentina pelo Canal de Beagle ou talvez pela necessidade dos donos do minério e do porto defenderem bem aquelas preciosidades. Mais tarde, ao jantar, levantei o assunto, e foi o PHD Osmar quem me desiludiu: aqueles canhões eram coisa do passado; as armas de hoje eram muito mais modernas e eficientes. Pensei, então, que talvez aquela montanha escondesse alguns mísseis. Por que não?
Nossa comitiva entrou na cidade pequena e fez breve reconhecimento por ela, chamando todas as atenções – apesar de naquele dia termos viajado de camisetas, por ser quente e por estarmos à baixa altitude, todos usávamos os capacetes negros que nos tornavam como que seres extraterrestres, e aquelas poderosas máquinas seguidas do carro de apoio formavam um cortejo deveras impressionante. Mas ali era uma cidade acostumada a trens e a navios, e não houve aquela curiosidade que despertáramos em Susques, quando penetráramos na cidadezinha ao pôr do sol e fizéramos parar as criancinhas que saíam da escola.
Nessa noite, ficamos num hotel bastante humilde, que era o melhor que os nossos guias acharam em Tocopilla. Ainda era bem cedo, e enquanto os motociclistas cuidavam das grandes máquinas negras, fiz o de sempre: tomei meu banho e parti à caça da Internet, que é sempre tão facilmente achável nos países hispânicos. Já fazia uns dois dias que os companheiros falavam nos locos, moluscos especialíssimos que só eram encontrados em Tocopilla.
-Mas o que tem de tão especial os tais locos? – lembro-me de ter perguntado, ainda em São Pedro de Atacama.
-Ah! Dona Urda, só experimentando para entender! – dissera-me sonhadoramente o seu Chico.
Aquilo só me deixara mais curiosa para conhecer os tais de locos, e tão logo fiz a minha parte na Internet, corri de volta ao hotel para ver o que os companheiros estavam fazendo.
Eu sempre demorava uma hora ou duas na Internet, tempo suficiente para que, quando voltasse, todas as motos já estivessem guardadas e todo o mundo estivesse já de banho tomado, querendo sair atrás de comida. Naquela noite, ao voltar ao hotel, o grande assunto eram os locos.
Há que se lembrar que Tocopilla é uma cidade pequena e que aquela era uma trivial noite de meio da semana, o que significava pouca variedade de lugares abertos para se comer. Alguém nos disse que se queríamos locos era melhor ir diretamente o Mercado Municipal, que lá, com certeza, os haveria. Aquilo não era o tipo de restaurante que agradasse muito aos meus amigos, no entanto – pesquisaram um pouco mais e souberam que havia um outro lugar aberto, um certo clube que seria mais sofisticado. Como nenhum de nós sabia direito onde era, achamos por bem pegarmos táxis. E amontoadas em táxis nos dirigimos ao tal clube, que, como a maioria dos outros lugares, estava fechado. Foi só ir e voltar de táxi, mas aquela pequena viagem deixou-me uma informação inesquecível. Um dos companheiros levantou com o motorista a história de que por ali nunca chovia, e o taxista, um homem de uns 60 anos, disse que uma vez, quando ele era criança, ali na beira do mar havia chovido.
- E então, como é que foi? – quisemos saber, e é a resposta do taxista que achei interessantíssima, e que até hoje considero uma informação ímpar:
- Foi horrível! Havia água para todos os lados!- e o taxista como que se encolhia, como que se arrepiava ao lembrar de coisa tão traumática vista uma única vez na sua já comprida vida! Fica meio complicado para nós, gente que vê chuva a vida inteira, entender a vida daquelas gentes do deserto, mesmo num oásis à beira-mar, como ali em Tocopilla! Há que se dizer que, apesar de as casas inglesas sobranceiras ao porto terem seus telhados vermelhos como os da Inglaterra, as casas dos outros moradores tinham ou aquela cobertura típica do deserto, de palha com uma camada superior de terra, ou muitas vezes não tinham cobertura nenhuma[1], como uma vez eu já pudera observar na cidade de Lima, Peru. Um aguaceiro que fosse num lugar daqueles deveria, mesmo, fazer um estrago danado! Acho que nunca vou me esquecer daquele taxista já adentrado nos anos e da sua angústia ao lembrar da única chuva que vira na sua vida, talvez meio século antes!

• Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR.

Um comentário:

  1. Grande, Urda! Descrição impressionante sim. No Ceará teve uma seca que durou oito anos em algumas regiões. Pessoas construíram casas dentro do rio e havia crianças alfabetizadas que nunca tinham visto chuva. Para lhes mostrar, uma vez a mãe deles pegou um pouco d'água e a jogou sobre uma peneira, sacudindo-a, enquanto dizia que chuva era daquele jeito. Também o Brasil conhece a seca.

    ResponderExcluir