domingo, 20 de novembro de 2011



Amor ao livro

O livro – e não importa seu formato; se o atual, tão prático e funcional, ou se o antigo, escrito em papirus, em placas de barro cozido, em peles de carneiro etc.etc.etc. – é, sem dúvida, uma das maiores invenções do homem. Hoje, já o temos em versão eletrônica e podemos lê-lo quer na tela do computador, quer, o que é mais prático e funcional, em um reduzido tablet. Evoluiu, pois, quanto à apresentação, sem perder, no entanto, seu caráter utilitário. A humanidade não pode prescindir de livros. Ao contrário, precisa mais, e mais, e mais deles.

É através deles que se torna possível transmitir, geração após geração, o que há de mais característico e distintivo no Homo Sapiens: sua inteligência. Conhecimentos colhidos através de estafantes e ingentes experiências deixam de se perder, registrados em suas páginas. Meditações, especulações, crônicas de acontecimentos, emoções e tudo o mais que caracteriza nossas vidas fica encerrada entre suas capas à disposição de quem se interesse em conhecê-las. Tudo isso e muito mais permanece como patrimônio da humanidade.

Estima-se que atualmente existam, em bibliotecas particulares, públicas e nas prateleiras de livrarias, pelo menos 20 exemplares diferentes por habitante do Planeta. Ou seja, há cerca de 140 bilhões de obras distintas, versando sobre todo e qualquer assunto que se possa imaginar. Há livros tratando desde a base teórica da ciência até a magia negra. Há desde os mais profundos e eruditos tratados de filosofia aos que registram meras receitas culinárias.

Romances, poemas, novelas, ensaios, contos, crônicas, biografias, a História dos povos, compêndios científicos e uma infinidade de assuntos estão, pelo menos potencialmente, à disposição dos mais de sete bilhões de habitantes do Planeta e dos outros tantos que vierem a nascer. E isso tudo redigido em cerca de 2.500 línguas e dialetos diferentes falados pelos homens. Pode-se dizer, sem nenhum receio de errar, que tudo o que alguém já pensou, sentiu ou fez, em qualquer tempo ou lugar, pode ser encontrado em algum livro.

Os temas a serem explorados, contudo, estão longe de se esgotar. Há uma infinidade de assuntos sendo, a cada instante – e que certamente ainda o serão em algum dia – tratados por alguém, em algum lugar. As mudanças constantes, políticas, econômicas, sociais, comportamentais e até geográficas, seguem sendo registradas e tendem a continuar a ser enquanto nossa espécie povoar a Terra.

Como não há limite para o conhecimento, por conseguinte, sempre haverá a necessidade que as novas descobertas e novas criações sejam igualmente registradas em livros, para que a transitoriedade humana não extinga o conhecimento que a espécie conquistou e reuniu e que precisa ser preservado para as gerações que vierem suceder a atual.

Tanto por este caráter utilitário, portanto, quanto pelo companheirismo que este objeto tão simples, mas tão precioso, proporciona, ele desperta imenso amor nas pessoas que convivem com ele e têm a exata compreensão da sua importância. Em alguns casos, esse apego irresistível transforma-se em paixão. E esse sentimento é manifestado de formas as mais variadas. Por exemplo, conservando esse amigo silencioso e versátil sempre ao alcance da mão, na cabeceira da cama em nosso criado-mudo, na escrivaninha de trabalho, nas estantes da biblioteca, na mala de viagens, em nosso carro etc. Ou seja, em todos os lugares onde possa estar disponível para consulta e para leitura.

Há, entretanto, os que mantêm essa relação de amor ainda mais estreita e personalizada. Deixam em seus livros sua marca pessoal, a prova de sua estima, uma espécie de “anel matrimonial”, consubstanciando uma ligação “até que a morte os separe”. São os que personalizam seu acervo com os chamados “ex-libris”, selos de propriedade adotados quer por colecionadores particulares, quer por bibliotecas públicas. No primeiro caso, muitas dessas coleções, contendo raridades bibliográficas preservadas e muito bem conservadas, passam de pai para filho, não raro por quatro ou cinco gerações, e sempre com acréscimos no acervo.

Todavia, em certos casos, premidos pelas circunstâncias, esse elo de amor familiar pelos livros é desfeito abruptamente. Quando isso ocorre, volumes e mais volumes, de extrema raridade, não raro únicos, acabam sendo vendidos para sebos a preços irrisórios, aos quilos, como papéis velhos, para “desocupar lugar”, por herdeiros indiferentes e néscios, que não sabem identificar os tesouros que têm em mãos.

A revista semanal editada pelo jornal espanhol “El País”, em sua edição de 27 de abril de 1986 (que tenho em mãos) trouxe interessante reportagem sobre “ex-libris”. A certa altura, relata o caso de uma pessoa que adquiriu, em um sebo de Barcelona, preciosa coleção, de volumes raríssimos, que trazia, em uma das capas, essa marca de propriedade do antigo dono.

Raciocinemos. A biblioteca de determinada pessoa diz muito sobre sua personalidade a quem saiba interpretar esses “sinais”. Permite que se desvende, por exemplo, sua maneira de agir, o que pensava, quais eram suas aspirações individuais e sociais e outras tantas coisas. Afinal, foram os livros que leu que lhe fixaram na mente boa parte dos conceitos que a nortearam; foram eles que a ajudaram a corrigir determinadas deficiências de caráter e, provavelmente, foram eles, também, “estopins” de sua criatividade (literária ou não).

Ao se desfazer dessa biblioteca, que provavelmente herdou (dificilmente o proprietário original se desfaria dessas preciosidades por qualquer motivo), esse sujeito “tapado” de Barcelona, que colocou à venda “os sonhos e a sabedoria” que alimentaram a alma do seu ancestral, desrespeitou, profundamente sua memória. Desnudou, publicamente, o que o avô (ou o pai) pensou, sonhou, sentiu e quis. Eu me sentiria – caso de alguma forma pudesse prever que alguma coisa parecida ocorreria com minha biblioteca – profundamente decepcionado e ofendido. Quanto aos “ex-libris”... voltarei, oportunamente, a tratar do assunto.

Boa leitura.

O Editor.



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Um comentário:

  1. Quando meu pai e mãe morreram, eu, que embora fale tudo claramente, sou discreta, achei horrível invadir o espaço deles, seus papéis, livros, roupas, anotações. É uma violência com a gente e com a memória do morto. Quanto ao descarte de coisas, é uma necessidade. O ideal seria doar os livros a alguma biblioteca, que os pudesse preservar. Quantos morrem, quantos têm seus objetos vilipendiados.

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