Reprodução da vida
As nossas reminiscências têm muito de fantasia e de emoção e pouco, ou quase nada, de exatidão e de realidade. Certo? Tenho plena convicção que sim. Contudo, mesmo que a memória não retenha, de forma fiel, minuciosa e detalhada, o que vimos, ouvimos, fazemos e o que nos fazem, ainda assim podemos e devemos extrair lições de tudo isso. E extraímos.
Esse aprendizado, não raro apenas subconsciente, é, grosso modo, o que se costuma chamar de “experiência”. E esta nos é essencial para o bom êxito de todo e qualquer empreendimento que viermos a fazer. E, entre eles, claro, a literatura. Esta, ao fim e ao cabo, nada mais é do que uma reprodução da vida – ou como ela é ou como gostaríamos que fosse (ou que não fosse, conforme o caso).
O escritor Elias Canetti observou que "a humanidade só está indefesa quando não mais possui experiência nem memória". É a esta “ dobradinha” mágica que devemos cultivar e preservar. Durante muito tempo, no correr do relativamente curto processo civilizatório do homem, estimado em no máximo treze milênios, o acervo de técnica, arte e cultura, gerado por indivíduos excepcionais, dotados, sobretudo, de intuição e clarividência, só foi preservado mediante a transmissão oral, de uma geração a outra. No "meio do caminho", muita coisa se perdeu. O que restou, porém, apenas se preservou porque alguém os “reproduziu” na prática. Ou seja, sobreviveu em razão da “experiência pessoal” de alguns.
Hoje, óbvio, os meios de preservação de conhecimentos são cada vez mais eficientes, por causa da linguagem escrita e, principalmente, dos veículos sofisticados de gravação e de transmissão de informações e de comportamentos. Ou seja, do que se convencionou generalizar sob a denominação de “cultura”.
Ainda há, é certo, a barreira da diferença idiomática, já que o problema das distâncias foi superado. Esta, todavia, também será, com certeza, vencida, com a universalização de determinados idiomas (talvez o inglês ou outro melhor assimilável por todos os povos) e com a tradução simultânea por computador. Ou, quem sabe, com uma futura uniformização, padronização e unificação da linguagem em todo o mundo. Isso já foi tentado, com a invenção do “esperanto”, experiência que, contudo, não prosperou. Provavelmente, a idéia foi “mal vendida”, ou surgiu fora de tempo.
Se a imaginação é imprescindível para o escritor, esta não pode vir isolada. Para ser eficaz, deve, sempre, vir acompanhada da “experiência”. Óbvio que o que “vivemos” é muito, mas muito mesmo mais importante, ao criarmos determinada obra literária, do que aquilo que apenas ouvimos, ou lemos, por exemplo. Não criei nenhum personagem, rigorosamente nenhum, que não fosse baseado em pessoas que conheci. Claro que “misturei” características, ora físicas, ora psicológicas, ora comportamentais, que dificultam, se não impossibilitam a identificação. Daí terem a verossimilhança que têm.
Uma pergunta, todavia, a esta altura, se impõe: todas as nossas experiências pessoais são passivas de serem utilizadas em nossas produções literárias? Algumas são tão insólitas, tão estranhas e tão absurdas que, mesmo sendo reais, soam inverossímeis. Se relatadas, serão interpretadas como mentiras, ou pelo menos como exageros, como as tais e famosas “histórias de pescador”. Fiz um teste, recentemente, relatando, em uma crônica, algo que aconteceu comigo, e não apenas por um dia, mas por oito anos, e passei por mentiroso. Recebi uma enxurrada de e-mails contestando a veracidade do relato, rigorosamente verdadeiro.
O que você pensaria de mim, paciente leitor, se eu lhe afirmasse que por oito anos consecutivos eu dormia e acordava ouvindo, todos os dias, sem exceção, urros de leões? Antes que você me julgue maluco, desses que ouvem vozes inexistentes ou outros sons que só existam na própria cabeça, me permita esclarecer.
Morei, durante todo este período, em uma casa que fazia divisa, na parede de fundo (exatamente onde ficava o meu quarto) com um mini-zoológico. E este localizava-se não em algum lugar ermo e desabitado, como seria de se esperar, mas em pleno centro de um dos mais populosos bairros de Campinas, em Barão Geraldo, que, entre outras coisas, é sede da célebre Unicamp.
Entre os animais que esse mini-zôo tinha, como várias espécies de macacos e de aves, dois ou três javalis e alguns porcos-espinhos, havia três leões (dois machos e uma fêmea). E suas jaulas, pude conferir depois, ficavam exatamente próximas à parede da minha casa. Mais especificamente, junto ao meu quarto. E, pior, separadas por reles centímetros da cabeceira da minha cama. Ou, pior ainda, bem juntinho ao meu ouvido.
Não havia riscos à minha integridade física e à da minha família. Havia, apenas, o inconveniente dos tais e constantes urros. Até hoje, passados trinta e dois anos que me mudei daquela casa, acordo sobressaltado, em muitas madrugadas, com a nítida impressão de haver ouvido aquele som assustador de feras selvagens.
Não sei se o mini-zôo ainda existe. Presumo que não. Mas tenho milhares de testemunhas (os moradores do bairro) para comprovar que não estou mentindo. Porém, como a maior parte dos meus leitores não é de Barão Geraldo, ou sequer de Campinas ... toda vez que abordo aquela experiência, sou invariavelmente acusado ou de “forçar a barra” e exagerar na fantasia ou então, pior (explicitamente) de estar mentindo.
Há outras situações em que não podemos nos valer da experiência. Por exemplo, muitos se julgam “experientes” em avaliar sentimentos, como se isso fosse possível. Não é. A experiência se adquire no terreno dos pensamentos e das obras. O que sentimos, porém, é incontrolável e ocorre à nossa revelia. Não somos, jamais, senhores de sentimentos e emoções. Vai daí que é impossível adquirir qualquer experiência nesse campo.
O que sentimos, embora pareça sempre a mesma coisa do que já foi sentido um dia, é sempre novo. Depende de uma série de circunstâncias perpetuamente mutáveis. Após amarmos uma pessoa, por exemplo, acreditamos que amaremos outras da mesmíssima maneira. Isso, contudo, nunca ocorre.
Henry David Thoreau nos lembra a propósito: “A experiência localiza-se nos dedos e na cabeça. O coração não tem experiência”. E é bom que assim seja. É saudável que nos vejamos impossibilitados de padronizar sentimentos. Se isso fosse possível, eles perderiam a intensidade e a perene novidade. Tornar-se-iam banais.
Ainda assim, a experiência pessoal é essencial a qualquer escritor. Porquanto, reitero, a literatura, de uma forma ou de outra, nada mais é do que a reprodução da vida. Mas cuidado com o que forem divulgar. A realidade, não raro, é tão absurda, que se reproduzida literalmente poderá lhe granjear a nada agradável fama de rematado mentiroso.
Boa leitura.
O Editor.
As nossas reminiscências têm muito de fantasia e de emoção e pouco, ou quase nada, de exatidão e de realidade. Certo? Tenho plena convicção que sim. Contudo, mesmo que a memória não retenha, de forma fiel, minuciosa e detalhada, o que vimos, ouvimos, fazemos e o que nos fazem, ainda assim podemos e devemos extrair lições de tudo isso. E extraímos.
Esse aprendizado, não raro apenas subconsciente, é, grosso modo, o que se costuma chamar de “experiência”. E esta nos é essencial para o bom êxito de todo e qualquer empreendimento que viermos a fazer. E, entre eles, claro, a literatura. Esta, ao fim e ao cabo, nada mais é do que uma reprodução da vida – ou como ela é ou como gostaríamos que fosse (ou que não fosse, conforme o caso).
O escritor Elias Canetti observou que "a humanidade só está indefesa quando não mais possui experiência nem memória". É a esta “ dobradinha” mágica que devemos cultivar e preservar. Durante muito tempo, no correr do relativamente curto processo civilizatório do homem, estimado em no máximo treze milênios, o acervo de técnica, arte e cultura, gerado por indivíduos excepcionais, dotados, sobretudo, de intuição e clarividência, só foi preservado mediante a transmissão oral, de uma geração a outra. No "meio do caminho", muita coisa se perdeu. O que restou, porém, apenas se preservou porque alguém os “reproduziu” na prática. Ou seja, sobreviveu em razão da “experiência pessoal” de alguns.
Hoje, óbvio, os meios de preservação de conhecimentos são cada vez mais eficientes, por causa da linguagem escrita e, principalmente, dos veículos sofisticados de gravação e de transmissão de informações e de comportamentos. Ou seja, do que se convencionou generalizar sob a denominação de “cultura”.
Ainda há, é certo, a barreira da diferença idiomática, já que o problema das distâncias foi superado. Esta, todavia, também será, com certeza, vencida, com a universalização de determinados idiomas (talvez o inglês ou outro melhor assimilável por todos os povos) e com a tradução simultânea por computador. Ou, quem sabe, com uma futura uniformização, padronização e unificação da linguagem em todo o mundo. Isso já foi tentado, com a invenção do “esperanto”, experiência que, contudo, não prosperou. Provavelmente, a idéia foi “mal vendida”, ou surgiu fora de tempo.
Se a imaginação é imprescindível para o escritor, esta não pode vir isolada. Para ser eficaz, deve, sempre, vir acompanhada da “experiência”. Óbvio que o que “vivemos” é muito, mas muito mesmo mais importante, ao criarmos determinada obra literária, do que aquilo que apenas ouvimos, ou lemos, por exemplo. Não criei nenhum personagem, rigorosamente nenhum, que não fosse baseado em pessoas que conheci. Claro que “misturei” características, ora físicas, ora psicológicas, ora comportamentais, que dificultam, se não impossibilitam a identificação. Daí terem a verossimilhança que têm.
Uma pergunta, todavia, a esta altura, se impõe: todas as nossas experiências pessoais são passivas de serem utilizadas em nossas produções literárias? Algumas são tão insólitas, tão estranhas e tão absurdas que, mesmo sendo reais, soam inverossímeis. Se relatadas, serão interpretadas como mentiras, ou pelo menos como exageros, como as tais e famosas “histórias de pescador”. Fiz um teste, recentemente, relatando, em uma crônica, algo que aconteceu comigo, e não apenas por um dia, mas por oito anos, e passei por mentiroso. Recebi uma enxurrada de e-mails contestando a veracidade do relato, rigorosamente verdadeiro.
O que você pensaria de mim, paciente leitor, se eu lhe afirmasse que por oito anos consecutivos eu dormia e acordava ouvindo, todos os dias, sem exceção, urros de leões? Antes que você me julgue maluco, desses que ouvem vozes inexistentes ou outros sons que só existam na própria cabeça, me permita esclarecer.
Morei, durante todo este período, em uma casa que fazia divisa, na parede de fundo (exatamente onde ficava o meu quarto) com um mini-zoológico. E este localizava-se não em algum lugar ermo e desabitado, como seria de se esperar, mas em pleno centro de um dos mais populosos bairros de Campinas, em Barão Geraldo, que, entre outras coisas, é sede da célebre Unicamp.
Entre os animais que esse mini-zôo tinha, como várias espécies de macacos e de aves, dois ou três javalis e alguns porcos-espinhos, havia três leões (dois machos e uma fêmea). E suas jaulas, pude conferir depois, ficavam exatamente próximas à parede da minha casa. Mais especificamente, junto ao meu quarto. E, pior, separadas por reles centímetros da cabeceira da minha cama. Ou, pior ainda, bem juntinho ao meu ouvido.
Não havia riscos à minha integridade física e à da minha família. Havia, apenas, o inconveniente dos tais e constantes urros. Até hoje, passados trinta e dois anos que me mudei daquela casa, acordo sobressaltado, em muitas madrugadas, com a nítida impressão de haver ouvido aquele som assustador de feras selvagens.
Não sei se o mini-zôo ainda existe. Presumo que não. Mas tenho milhares de testemunhas (os moradores do bairro) para comprovar que não estou mentindo. Porém, como a maior parte dos meus leitores não é de Barão Geraldo, ou sequer de Campinas ... toda vez que abordo aquela experiência, sou invariavelmente acusado ou de “forçar a barra” e exagerar na fantasia ou então, pior (explicitamente) de estar mentindo.
Há outras situações em que não podemos nos valer da experiência. Por exemplo, muitos se julgam “experientes” em avaliar sentimentos, como se isso fosse possível. Não é. A experiência se adquire no terreno dos pensamentos e das obras. O que sentimos, porém, é incontrolável e ocorre à nossa revelia. Não somos, jamais, senhores de sentimentos e emoções. Vai daí que é impossível adquirir qualquer experiência nesse campo.
O que sentimos, embora pareça sempre a mesma coisa do que já foi sentido um dia, é sempre novo. Depende de uma série de circunstâncias perpetuamente mutáveis. Após amarmos uma pessoa, por exemplo, acreditamos que amaremos outras da mesmíssima maneira. Isso, contudo, nunca ocorre.
Henry David Thoreau nos lembra a propósito: “A experiência localiza-se nos dedos e na cabeça. O coração não tem experiência”. E é bom que assim seja. É saudável que nos vejamos impossibilitados de padronizar sentimentos. Se isso fosse possível, eles perderiam a intensidade e a perene novidade. Tornar-se-iam banais.
Ainda assim, a experiência pessoal é essencial a qualquer escritor. Porquanto, reitero, a literatura, de uma forma ou de outra, nada mais é do que a reprodução da vida. Mas cuidado com o que forem divulgar. A realidade, não raro, é tão absurda, que se reproduzida literalmente poderá lhe granjear a nada agradável fama de rematado mentiroso.
Boa leitura.
O Editor.
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A realidade é mais assustadora do que a ficção. Sempre disse que as novelas não ensinam novos costumes, mas os copiam da vida real e os divulgam.E sobre os leões, acredito piamente, pois além de ter sido você quem contou, eu tive durante dez anos a mesmíssima experiência. Morei aqui em Montes Claros no Bairro Morada do Parque, que fica atrás do Parque Municipal da cidade, onde tem também um mine-zoológico. Lá tinha um leão e uma leoa. A distancia da minha casa era mais camarada, pois morei no alto do bairro, uns dois Km da jaula, mas ainda assim os urros eram muito próximos e constantes.
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