sexta-feira, 25 de novembro de 2011






Seu João, o lógico *

** Por Urariano Mota


Eu não lembro de alguém, algum dia, ter chamado seu João de maluco. Isso porque, se perdoam minha falta de originalidade, seu João era um maluco, um esquisito à sua maneira. O que é isso?

Os esquisitos do bairro de Água Fria eram, de uma ou de outra maneira, ligados a atividades fora do cotidiano. As coisas de que gostavam, e seus gostos, já eram uma conduta desviante. Um gostava de música, vivia do comércio de discos à margem da moda e das lojas – o magro, ex-tuberculoso Strauss; outro, Euclides, vítima de um AVC, fixava-se em dois desenhos de um só perfil, repetidas ao infinito; outra, professora da Escola Mixto com x Santo Antonio, refrescava a sua sede de sexo sentada em bacias d’água.

Num meio pobre como o nosso, miseravelmente ignorante, esses indivíduos afeiçoados às coisas mínimas de gosto do espírito já estavam, por tendência natural, condenados. Seriam, como o confirmaram, malucos. Em nome da verdade, pela forma como fecharam suas tendências, seriam malucos em qualquer sociedade. É bom que se diga também que a maneira, a fixação desses malucos, suas idéias ou manias eram a vitória da miséria sobre a inteligência, uma derrota do espírito, que, aprisionado, dava sinais de sobrevivência em saídas ridiculamente estreitas, sufocadas. Vidas sob compressão. Uma compressão que não os matou, mas os deixou como anões.

A saída do seu João, para liberar sua esquisitice e não ser chamado, não ser tomado como maluco, teve astúcia. Ele aliou sua esquisitice às coisas da terra. Ligou-se a atividades que não eram estranhas às pessoas do bairro: venda de aguardente com caldo de feijão. Caldo misturado a azeitona, camarão e patê de fígado. Que eram servidos com conversa e fixações de maluco. Aí está o “à sua maneira”. A esquisitice não despertava suspeitas. A não ser, claro, a certo Simão Bacamarte, o Alienista. Como Água Fria não era a Vila de Itaguaí...

Seu João implicava com o uso não aritmético das palavras. Essa implicância era uma das suas manias.

– Vocês prestem atenção, dizia-nos ele. Se o número de objetos é um, ele não pode ao mesmo tempo ser um e ser dois. Não é verdade?

Desconfiados dessa obviedade, desconfiados do lugar para onde ele queria nos levar, protestávamos. Spinelli, que já vinha lendo filosofia, misturava, como todo bom adolescente, filosofia com bugalhos:

– Olhe, seu João, o sujeito pode ao mesmo tempo ser um e ser dois. O senhor mesmo é barraqueiro, um. E é de Pernambuco, dois. O que é que tem?

Seu João sorria, como um bom sofista. Mas um sofista que acreditava em sua verdade.

– Meu filho, eu sou um. Um, um barraqueiro de Pernambuco. Eu sou um João, um só, um único. Você está me entendendo?

E com mais veemência:

– Quando uma coisa é uma, é uma. Quando são duas, são duas. Quando são três, são três. Quando são quatro...

E vendo a nossa impaciência ante a sucessão infinita dos números naturais, perguntava:

– Quem é que duvida? Tem dúvida? ... inquiria, dirigindo-se a cada um de nós.

Para arrematar, na surpresa:

– Portanto, é Um Lápi, e Dois Lápis! Lápi, masculino, singular, é Um. Lápis, masculino, plural, são Dois!

– Mas seu João...

– Não adianta! E enunciava com os dedos, até três, os ramos supremos do conhecimento humano:

- Pelas leis da Lógica, da Física e da Matemática: é Um Lápi e Dois Lápis!

– Existem outras leis, insistia Spinelli. O português tem leis que...

– Não adianta. Isto não é português, menino. É lógica. Não tem Rui Barbosa nem seu Camões.

– Seu João...

– Psiu! Não tem força nem gramática que engula a Lógica, a Física e a Matemática.

A sua entonação, quando dizia “a lógica, a física e a matemática”, era de maiúsculas. Se insistíssemos, a arenga continuava noite adentro. Do lápis ele iria ao pires, do pires ao ourives, do ouvires ao pires, do pires ao lápis, sempre argumentando que a letra S era um indicativo de número, pelas leis maiores da Lógica, da Física e da Matemática.

É curioso notar que seu João possuía uma visão bem penetrante para desmontar os absurdos que não fossem os de sua autoria. A dois dos nossos, eu e Zanoni, adolescentes que dávamos os primeiros passos no aprendizado de ciências, que desejávamos inventar uma caixa, uma superchocadeira, que apressasse o tempo em que ovos de galinha desabrochassem em graciosos pintinhos, seu João observou:

– É uma invenção muito útil. Mas como pretendem a engenharia?

– A gente vai aquecendo, seu João, dissemos. A gente vai aquecendo devagar, até o limite. No limite a casca quebra. Vai ficar mais rápido.

– Muito interessante. Mas por sua invenção ninguém mais cozinha ovos, porque já pulam pintinhos.


*Do livro “Memórias de Água Fria”


** Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

Um comentário:

  1. Parece que a lógica de seu João é mais convincente do que a dos meninos, pessoas que aceitam o diferente com mais facilidade que os adultos, sempre tão ciosos do que é certo e do que é errado.

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