sábado, 26 de novembro de 2011







Oração na Acrópole


* Por Ernest Renan


Só muito tarde comecei a ter recordações. O imperioso dever que, durante os anos da minha juventude, me obrigou a resolver, por minha conta, e não com a indolência do especulativo, mas com a febre de quem luta pela vida, os mais elevados problemas da filosofia e da religião, não me deixava sequer um quarto de hora para olhar para trás. Arrojado, em seguida, às correntes do século, que desconhecia por completo, encontrei-me diante de um espetáculo, na realidade tão novo para mim como o seria a sociedade de um Saturno ou de um Vênus para aqueles que a pudessem observar. Tudo me parecia frágil, inferior moralmente ao que vi em Issy e em Saint-Sulpice; no entanto, a superioridade da ciência e da crítica de homens como Eugène Burnouf, a incomparável vida que emanava da conversação do Sr. Cousin, a grande renovação que a Alemanha levava a cabo em quase todas as ciências históricas, em seguida as viagens, a ânsia de produzir, arrastaram-me e não me deixaram recordar os anos que já longe de mim estavam.
A minha estadia na Síria afastou-me ainda mais das antigas lembranças. As sensações completamente novas que aí encontrei, as visões que tive de um mundo divino, estranho aos nossos frios e melancólicos países, absorveram-me por completo. Durante algum tempo, os meus sonhos foram a adusta cadeia montanhosa de Galaad, o pico de Safed, onde aparecerá o Messias; o Carmelo e os seus campos de anêmonas semeadas por deus; o despenhadeiro de Aphaca, donde mana o rio Adônis. Coisa singular!
Foi em Atenas que, em 1865, experimentei pela primeira vez um vivo sentimento de regresso ao passado, um efeito como o de uma brisa fresca, penetrante, vinda de muito longe. A impressão que Atenas me causou é, de longe, a mais forte que alguma vez experimentei. Há um lugar, e não dois, onde a perfeição existe: é lá. Nunca antes eu imaginara algo de semelhante. Era o ideal cristalizado em mármore pentélico que a mim se mostrava. Até então, acreditara eu que a perfeição não é deste mundo; só uma revelação me parecia aproximar-se do absoluto. Já há muito que deixara de acreditar no milagre, no sentido próprio do termo; no entanto, o destino único do povo judeu, que confluiu em Jesus e no cristianismo, afigurava-se-me como algo de inteiramente à parte. Mas eis que ao lado do milagre judeu se vinha postar, para mim, o milagre grego, algo que só existiu uma vez, que jamais fora visto, que não voltará a ver-se, mas cujo efeito durará eternamente, isto é, um tipo de beleza eterna, sem qualquer mácula local ou nacional. Sabia perfeitamente, antes da minha viagem, que a Grécia criara a ciência, a arte, a filosofia, a civilização; mas faltava-me a escala. Quando vi a Acrópole, tive a revelação do divino, como a tivera pela primeira vez em que senti viver o evangelho, ao aperceber-me do vale do Jordão, a partir das alturas de Casyun. O mundo inteiro pareceu-me, então, bárbaro. O Oriente chocou-me com a sua pompa, com a sua ostentação, com as suas imposturas.
Os Romanos não passaram de grosseiros soldados; a majestade do mais belo romano, de um Augusto, de um Trajano, surgiu-me como mera pose, ao lado da leveza, da nobreza simples destes cidadãos altivos e tranquilos. Celtas, Germanos, Eslavos apareceram-me como espécies de Citas conscienciosos, mas penosamente civilizados. Achei a nossa Idade Média sem elegância e sem garbo, maculada de arrogância deslocada e de pedantismo.
Carlos Magno pareceu-me um gordo palafreneiro alemão; os nossos cavaleiros surgiram-me como uns pacóvios, dos quais teriam sorrido Temístocles e Alcibíades. Houve um povo de aristocratas, um público inteiro composto de conhecedores, uma democracia que captou matizes de arte tão sutis que os nossos refinados ainda agora com dificuldade aprendem. Houve um público capaz de compreender o que faz a beleza dos Propileus e a superioridade das esculturas do Pártenon.
Esta revelação da grandeza verdadeira e simples tocou-me até ao fundo do meu ser. Tudo o que, até então, conhecera me pareceu o esforço mal-asado de uma arte jesuítica, de um rocócó feito de pompa papalva, de charlatanismo e de caricatura. Foi sobretudo na Acrópole que estes sentimentos se apoderaram de mim. Um excelente arquiteto, com quem eu viajara, tinha o costume de me dizer que, para ele, a verdade dos deuses residia na proporção da beleza sólida dos templos que lhes foram erigidos. Medida por tal critério, Atenas estaria para lá de qualquer rivalidade. Com efeito, surpreendente é que aqui o belo nada mais é do que a honestidade absoluta, a razão, a própria reverência para com a divindade. As partes ocultas do edifício são tão cuidadas como as que estão à vista. Nenhum desses trompe-l’oeil que, sobretudo nas nossas igrejas, são como uma perpétua tentativa de induzir em erro a divindade quanto ao valor da coisa oferecida.
Esta seriedade, esta retidão faziam-me enrubescer por, mais de uma vez, ter sacrificado a um ideal menos puro. As horas que passava na colina sagrada eram horas de oração. Toda a minha vida, à maneira de uma confissão geral, transcorria diante dos meus olhos Mas ocorria algo deveras singular: ao confessar os meus pecados, acabava por apreciá-los ainda mais; as resoluções de me tornar clássico acabavam por me precipitar, mais do que nunca, no pólo oposto.
Um papel antigo, que descubro no meio das minhas notas de viagem, contém isto: oração que fiz na Acrópole, quando acabei por compreender a perfeita beleza: “Ó nobreza! Ó beleza simples e verdadeira! Deusa, cujo culto significa razão e sabedoria, tu, cujo templo é uma eterna lição de consciência e de sinceridade, tarde chego ao limiar dos teus mistérios; trago ao teu altar muitos remorsos. Para te encontrar, foram-me necessárias buscas infindas. A iniciação que conferias ao ateniense, nascendo de um sorriso, tive de conquistá-la à força de reflexões, à custa de longos esforços.
“Nasci, deusa de olhos azuis, de pais bárbaros, no meio dos bons e virtuosos Cimérios, que habitam à beira de um mar sombrio, eriçado de rochedos, sempre batido pelas tempestades. Lá, mal se conhece o sol; as flores são espumas marinhas, algas e conchas coloridas que se encontram em baías solitárias. Lá, as nuvens apresentam-se sem cor, e até a alegria é um pouco triste; mas é lá que fontes de água fresca brotam do rochedo e os olhos das donzelas são como as fontes verdes em que, num fundo de ervas onduladas, se contempla o céu. “Os meus pais, até onde nos é possível remontar, dedicavam-se a navegações longínquas, por mares que os teus argonautas não conheceram.
Jovem ainda, ouvi as canções das viagens polares; fui embalado pela lembrança dos gelos flutuantes, dos mares de bruma semelhantes ao leite, das ilhas povoadas de aves que, nas suas horas, cantam e, voando todas em conjunto, obscurecem o céu. “Sacerdotes de um culto estrangeiro, provindo dos Sírios da Palestina, tiveram o cuidado de me educar. Sábios e santos eram esses sacerdotes. Ensinaram-me as longas histórias de Cronos, que criou o mundo, e do seu filho que, diz-se, viajou sobre a terra. Os seus templos são três vezes mais altos que o teu, ó Eurítmia, e semelhantes a florestas; só que não são sólidos; caem em ruínas ao fim de quinhentos ou seiscentos anos; são fantasias de bárbaros, que imaginam que se pode fazer algo de bom fora das regras que tu, ó razão, traçaste aos que inspiras.
Mas estes templos compraziam-me; eu não tinha estudado a tua divina arte; neles encontrava deus. Neles se entoavam cânticos de que ainda me lembro: “Salve, estrela do mar. Rainha dos que gemem neste vale de lágrimas”; ou então: “Rosa mística, torre de marfim, casa de ouro, estrela da manhã. . . ” Presta atenção, ó deusa, ao recordar-me desses cânticos, derrete-se o meu coração e quase me torno um apóstata.
Perdoa-me este ridículo; não podes imaginar o encanto que os magos bárbaros instilaram nestes versos e como me custa seguir a razão nua e crua E, depois, se soubesses como se tornou difícil servir-te! Desapareceu toda a nobreza. Os Citas conquistaram o mundo. Já não há república de homens livres; há apenas reis descendentes de um sangue espesso, majestades de que haverias de sorrir. Pesados hiperbóreos chamam levianos aos que te servem. . . Uma apavorante pambeócia, uma amálgama de todas as sandices, estende sobre o mundo uma tampa de chumbo, sob a qual se fica sem ar. Como te devem meter pena até os que te veneram! Lembras-te do caledônio que, há cinquenta anos, estilhaçou o teu templo a golpes de martelo para te levar para Tule?
É assim que todos fazem. . . Escrevi, em conformidade com algumas regras que aprecias, ó Teonoé, a vida do jovem deus que venerei na minha infância; eles tratam-me como um Evémero; escrevem-me para saber que objetivo me propus; apreciam apenas o que serve para fazer frutificar as suas mesas de trapezistas. Céus! Para que se escreve a vida dos deuses? Não será apenas para que se aprecie o divino que neles residiu, para mostrar que este divino ainda vive e viverá eternamente no coração da humanidade?
“Lembras-te do dia, sob o arcontado de Dionisodoro, em que um feio e pequeno judeu, falando o grego dos Sírios, veio aqui, percorreu os teus átrios sem te compreender, leu as tuas inscrições de esguelha e julgou ter encontrado no teu recinto um altar dedicado a um deus, que seria o deus desconhecido? Pois bem, este judeu pequenote levou a melhor; durante mil anos, trataram-te como ídolo, ó Verdade; durante mil anos, o mundo foi um deserto onde não germinava flor alguma.
Em todo este tempo, permaneceste em silêncio, ó Salpinx, clarim do pensamento. Deusa da ordem, imagem da estabilidade celeste, éramos culpados por te amar e, hoje, que por um trabalho consciencioso conseguimos aproximar-nos de ti, acusam-nos de termos cometido um crime contra o espírito humano, ao rompermos as cadeias de que Platão se abstinha.
“Só tu és jovem, ó Cora, só tu és pura, ó Virgem; só tu és sã, ó Hígia; só tu és forte, ó Vitória. Guardas as cidades, ó Prómacos; tens, ó Área, o que de Marte é preciso, a paz é o teu intuito, ó Pacífica. Legisladora, fonte das constituições justas! Democracia, tu, cujo dogma fundamental é que tudo vem do povo e que, onde não há povo para alimentar e inspirar o gênio, nada existe, ensina-nos a extrair o diamante das multidões impuras. Providência de Júpiter, obreira divina, mãe de toda a indústria, protetora do trabalho, ó Érgana, tu que constituis a nobreza do trabalhador civilizado e o colocas tão portentosamente acima do preguiçoso cita! Sabedoria, tu que Zeus gerou depois de sobre si próprio se ter dobrado, após ter respirado profundamente; tu que habitas em teu pai, inteiramente unida à sua essência; tu que és a sua companheira e a sua consciência; energia de Zeus, que ateias e manténs o fogo entre os heróis e os homens de gênio, faz de nós espiritualistas realizados. No dia em que os Atenienses e os habitantes de Rodes lutaram pelo sacrifício, decidiste habitar entre os Atenienses, como os mais sábios. Teu pai, porém, fez descer Pluto numa nuvem de ouro sobre a cidade de Rodes, porque também os seus habitantes prestaram homenagem à sua filha. Os cidadãos de Rodes foram ricos, mas os Atenienses tiveram o espírito, ou seja, a verdadeira alegria, a eterna jovialidade, a divina infância do coração.
“O mundo só se salvará regressando a ti, repudiando os seus laços bárbaros. Corramos, venhamos em turba. Que belo o dia em que todas as cidades que recolheram os destroços do teu templo, Veneza, Paris, Londres, Copenhague, irão reparar os seus furtos, formarão teorias sagradas para restituir os restos que possuem, dizendo: “Perdoa-nos, ó deusa! Foi para salvaguardá-los dos maus gênios da noite”, em reconstruirão as tuas paredes ao som da flauta, para expiar o crime do infame Lisandro! Depois irão a Esparta maldizer o solo onde esteve essa mestra de erros sombrios, e insultá-la, porque já não existe.
“Firme em ti, resistirei aos meus fatais conselheiros; ao meu ceticismo, que me levou a duvidar do povo; à minha inquietação de espírito que, quando o verdadeiro é descoberto, ainda mo leva a procurar; à minha fantasia que, após a razão se ter pronunciado, me impede de ficar em repouso. Ó Arquegeta, ideal que o homem de gênio encarna nas suas obras-primas, prefiro antes ser o último em tua casa do que o primeiro noutro lado. Sim, agarrar-me-ei ao estilóbato do teu templo; esquecerei qualquer outra disciplina que não a tua, tornar-me-ei um estilita em cima das tuas colunas, a minha cela será em cima da tua arquitrave. Coisa ainda mais difícil! Por ti, se puder, tornar-me-ei intolerante, parcial! Só a ti amarei. Vou aprender a tua língua, desaprender tudo o mais. Serei injusto para aquilo que não te diz respeito; tornar-me-ei o servo dos últimos dos teus filhos. Exaltarei e adularei os atuais habitantes da terra que deste a Erecteu. Tentarei amar até os seus defeitos; persuadir-me-ei, ó Hípia, de que eles descendem dos cavaleiros que, lá em cima, no mármore do teu friso, celebram a sua festa eterna. Arrancarei do meu coração toda a fibra que não for razão e arte pura. Deixarei de gostar das minhas doenças, de me comprazer na minha febre. Conserva-me nos meus firmes propósitos, ó salutar! Ajuda-me, tu que salvas!
Quantas dificuldades, de fato, prevejo! Quantos hábitos de espírito terei de mudar! Quantas gratas recordações arrancarei do meu coração! Sim, tentarei; mas não estou seguro de mim. Tarde te conheci, beleza perfeita. Terei retrocessos, fraquezas. Uma filosofia, decerto depravada, levou-me a acreditar que o bem e o mal, o prazer e a dor, o belo e o feio, a razão e a loucura se transformam umas nas outras através de cambiantes tão indecifráveis como os do pescoço da pomba.
Nada amar, nada odiar em absoluto, converte-se então em sabedoria. Se uma sociedade, se uma filosofia, se uma religião tivesse possuído a verdade absoluta, esta sociedade, esta filosofia, esta religião teria vencido todas as outras e seria a única a viver no momento atual. Enganaram-se todos os que até hoje julgaram ter razão, como agora vemos com clareza. Poderemos nós, sem louca presunção, acreditar que o futuro não nos há de julgar como nós julgamos o passado? Eis as blasfêmias que o meu espírito, profundamente corrompido, me sugere. Uma literatura que, como a tua, fosse inteiramente salubre suscitaria, agora, apenas tédio.
“Sorris da minha ingenuidade. Sim, tédio. . . que fazer, se estamos corrompidos? Irei mais longe, deusa ortodoxa, falar-te-ei da íntima depravação do meu coração. Razão e bom senso não bastam. Há poesia no Estrímon gelado e na embriaguez do Trácio. Virão séculos em que os teus discípulos passarão por discípulos do tédio. O mundo é maior do que pensas.

• Filósofo, filólogo e historiador francês

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