terça-feira, 29 de novembro de 2011







Só se Deus vier pessoalmente...

* Por Lêda Selma




Padre Santinho recebeu, em confessionário, a visita de um fiel esbaforido e encabulado, Tristino, sujeito anguloso, pacato, de meios risos, franqueza inteira e pouca prosa. Um tanto sem jeito, depois de forçar uma tosse seca e falhada, o homem logo avisou o confessor:
– Olha, padre, o assunto é confidencioso, reservoso mesmo. Deus me livre de cair na boca do povo. Já basta precisar cair no ouvido do senhor, isto é, nos ouvidos, porque um fuxica logo pro outro...
– Fique tranquilo, filho, segredo de confissão é inviolável...
– Ela também, padre...
– Ela...?! Calma, filho, sem afobação! Diga-me o que lhe atormenta a alma...
– Alma não, padre, antes fosse! A atormentação é no corpo; a alma fica só na espreita, aperreada.
– Então, o que aconteceu?
– Desaconteceu. Desde que me casei com a Duvirge toda noite é a mesma repetição: deitar, relar, tretar e não consumar.
– Mas vocês estão casados há seis meses...
– Seis meses de tenta, recua; bate, volta; lambisca, mas não petisca. Uma desdita a minha vida. Duvirges diz que não casou pressas coisas, que tô é possuído, que toda noite ela sente um intruso descarado roçagando suas propriedades...
– Você foi com jeito, filho, com carinho?
– Se fui, meu padre, se fui...
– E ela, filho, não se rendeu?
– Ela? Só a renda da camisola! A diáboa da mulher recusou meus carinhos, me chamou de “arrenegado, pecador desavergonhudo, filho do troço ruim”. Esbravejou que só quero “safadagem” e gritou enfurecida quando lhe mostrei minha vontade: “Recolhe já esse espantalho, larga de possuição e me deixa drurmir”.
– É, Tristino, só mesmo conversando com sua mulher. Que ela venha falar comigo, sem demora.
– Nestorinha, padre, entrego pra Duvirge seu recado. E que Deus Se faça de enxerido e ajude o vigário nessa tarefa. A bênção, padre.
Maria Eduviges, a esperada, foi recebida, na sacristia, pelo padre, que a acomodou em uma cadeira surrada e pouco confortável. Sem rodeios, inquiriu-a:
– Minha filha, você gosta do seu marido?
– Gosto, sim sinhô, e é demais, pade. Home bão, trabaiadero e honesto quinem ele, só ele. Por isso, zelo da casa, capricho na boia, só pra agradar meu Tristino.
– Está certo, filha, mas e as obrigações de mulher casada? Ele é seu marido, tem lá seus direitos, porém, se sente rejeitado, à noite, quando se deitam, porque você não o aceita, recusa seus carinhos... está me entendendo, filha?
– Num tô entendendo o sinhô, e meu marido, antão, num entendo de jeito maneira! O home tá cumas esquisitice, cruzincredo! Dorme pelado, pula inriba de mim, me fala cada impropério, bole com minhas particularidades, e me cutuca de noite com um cutucador medonho.
– Eduvirges, minha filha, tudo isso se chama amor e é do amor que nascem os filhos, compreende? E o amor é abençoado por Deus; fui porta-voz do Senhor no dia em que casei vocês!? Deus autorizou seu marido a amá-la e a ter filhos com você, pode acreditar.
– Querdito não, pade. Deus num ia mancomunar com essas perdição, oxe! Tristino deve é se exemplar em São José, que nunca molestou a Virge Maria, só assim o encapetado achará conformação. Eu lhe prigunto, pade: o marido de Maria, a Virge, reclamou pra Deus da recusa da muié?! Não. Nem podia, pruquê foi Deus mesmo quem ordenou ao Isprito Santo a fazedura do fio, ora! Ele se conformou e pronto. Tamém, sou moça de famia, pade, e já até palavreei com Deus, assim: Pai, dê mais um servicinho pro seu santo amigo, pois resolvi deixar pro conta do enviado do Sinhô a consumação do casamento. E inté já tô aqui no jeito, só esperando.
– Que doidice é essa, filha minha? Vou explicar mais explicad...
– Dianta não, pade. Num arredo esta decisão da cabeça nem que o Isprito, o Santo, vague o lugar dele pro Zé, por causa de seus aperreios. E a num ser que o próprio Deus, por escrito ou pessoalmente, Se abale até aqui pra desatender minha resolvição, vou ficar quietinha, aguardando a santa lua de mel.

• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.

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