Meu bodinho de estimação
*
Por Pablo Uchoa
“Reco, reco, reco...”
Ouço com alegria a navalha do
seu Odilo, o barbeiro, cutucar os cantos do meu rosto. Trabalha como
um artesão, delineia formas, tesourinha nas pontas, verifica a
simetria.
“Reco, reco, reco...”
Mais uns ajustes e posso dizer
que tenho um cavanhaque.
– Adeus, velhos tempos! –
comemoro.
Tempos sofridos, quando eu mal
podia dizer que tinha pentelhos, no máximo uma penugem fina e rala
que mal dava para a virilha. Ah, o velho espelho encardido no
banheiro, que revelava minhas espinhas e me escondia os pêlos do
peito! Sonhava com tufos fartos se destacando ao redor dos mamilos,
até o dia em que reparei no tórax de meu pai e me conformei, teria
no máximo umas plumas escassas que iam descolorir e minguar na
velhice.
Agora estou vingado, ostento
meu cavanhaque que dá para o gasto apesar de uma falha aqui outra
acolá.
– Ficou charmoso – avalia
seu Odilo.
– Ficou ridículo! – zanga
uma amiga, lúcida. Arreganho os dentes, mas ela nem se intimida,
repete o desaforo, tira essa barbicha ridícula!
Barbicha não senhora, mais
respeito com o cavanhaque.
Meu parceiro me deixou com
cara de macho centro-americano, hombre
para ninguém
botar defeito, à noite vou a um bar de salsa desses que estão na
moda e abordo as donzelas, me
dá el gusto de una danza?
Na salsa parece que meu
cavanhaque está em casa, fazemos um intervalo para uns mojitos
e lasco um olhar
safado pra ela, coço a barbicha, oye
que estás guapísima esta noche.
“Cafa” no último.
Óbvio ao extremo.
Pouco me importa, funciona,
digo a uma amiga, que ri, e esta agora, cavanhaque tem
funcionalidade? Pois sim, arregalo os olhos, muitas. Ainda não
descobri quais, mas meus amigos abarbichados garantem que um
cavanhaque pode ser polifuncional, multifuncional e até – veja
você – transfuncional, foi bem essa a definição de um douto
professor de história adepto do rosto apeludado, muito fluente nos
termos acadêmicos em voga.
Pouco familiarizado, no
entanto, com os fatos históricos e etimológicos ligados ao seu
enfeita-queixo. Pois desconhecia que o cavanhaque foi assim batizado
em referência ao primeiro-ministro francês Louis-Eugène Cavaignac,
ainda nos tempos da Segunda República.
Curiosamente, o
primeiro-ministro não gostava de pêlos ornares no rosto, quem
difundiu esse costume foi seu adversário, o imperador Luís Napoleão
Bonaparte, cujo cavanhaque, de tão espesso, lhe fazia parecer um
bode. Os franceses, aliás, utilizam até hoje a palavra bouc –
literalmente, bode – para falar de cavanhaque.
Sapeco essa demonstração de
cultura inútil para um amigo que trabalha no Itamaraty (e juro por
Deus que não é trocadilho, a conversa se deu diante de um bode
preparado com esmero num restaurante do Recife), e ele me rebate,
também estudou as transformações da palavra:
– No Itamaraty, cavanhaque
virou “pederasta” – ele caçoa. – Sabe como é, diplomata
velho é bicho sofisticado, sensível...
Blasfêmia. Mania besta de
duvidar de quem usa cavanhaque.
Pois alguns séculos atrás os
estimados “bodes” da alta sociedade brasileira mereciam até
xícaras de porcelana com protetor para bigode, comprove-se em
qualquer museu colonial. Cavanhaque era coisa séria, bigodinho de
leite, descuido de criança.
Meu cavanhaque levarei a
sério, e se bobear posso até aumentá-lo, deixar crescer uma
vistosa barba. Como fez meu amigo Lira Neto, que usava uma bem negra
e comportada até aparecer na política o senhor Antônio Palocci
que, de perfil, era assim uma cópia sua. Pobre, lhe pilharam tanto
que deixou os pêlos formarem uma barba completa, e de quebra
levemente grisalha, visual de escritor.
Ou senão faço como aquele
francês que usava o bigode do cavanhaque ao estilo do seu
conterrâneo Asterix, as pontas longas se enrolando no meio da
bochecha. Meu pai, numa inexplicável ausência de bom senso, talvez
à vontade pelo vinho que o anfitrião lhe servia, investiu-se do
espírito brasileiro e soltou, sem pensar:
– Onde é que você arrumou
este espana-bocetas, rapaz?
E o francês riu amarelo,
aposto que depois disso o vinho foi servido a ritmo mais compassado.
Não se sabe se por decisão dele próprio ou de sua esposa, que
também corou de leve, o fato é que o homem, no dia seguinte,
reapareceu de cara limpa. E nunca mais usou cavanhaque.
(*)
Cronista,
vive atualmente na Inglaterra, dedicando-se a pesquisas no Institute
for the Studies of the Americas, da Universidade de Londres. Autor do
livro-reportagem “Venezuela: A Encruzilhada de Hugo Chávez” (Ed.
Globo, 2003), menção honrosa no prêmio Vladimir Herzog 2004.
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