Tudo será como sempre
* Por Marcelo Sguassábia
Sucedeu que ele acordou com aquela ideia na cabeça: fazer tudo diferente do que estava acostumado. Tirar a vidinha do piloto automático. Lembrou daquele famoso pressuposto da programação neurolinguística, que aprendeu num curso rápido sobre o assunto: SE VOCÊ CONTINUAR A FAZER O QUE VEM FAZENDO, VAI CONTINUAR A OBTER O QUE VEM OBTENDO. A afirmação era óbvia, tão óbvia que parecia estúpido levá-la a sério. Até que caiu a ficha. E ele resolveu que aquele era o dia da guinada.
Começou na cama mesmo. Absteve-se da interminável sessão de bocejos e espreguiçamentos e de um salto pôs-se de pé. Fez trinta flexões, bem mais que as cinco de costume. Inverteu a ordem dos remédios - primeiro o da pressão, depois o complexo B.
Escovou os dentes começando pelos do fundo e terminando pelos da frente, exatamente como nunca tinha feito. Não se barbeou. Vestiu um terno verde e uma gravata prateada. Sentou-se à mesa, na cadeira da outra ponta. Ao invés de colocar na xícara bastante leite e um pouquinho de café, pôs muito café e quase nada de leite. Despediu-se da esposa com um beijo no rosto, e não na testa.
Quando saiu já ia fazendo o caminho de costume, mas a tempo pegou outro rumo.
Ligou o rádio do carro. Tirou da CBN e sintonizou num programa sertanejo. Parou no semáforo e dessa vez comprou as balinhas que o garoto ofereceu. Passou em frente à igreja e não fez o sinal da cruz. Estacionou o carro na vaga do chefe (ele nunca estava mesmo). Subiu pela escada, não ia se repetir tomando o elevador. Decidiu que não responderia nenhum e-mail, por isso nem abriu sua caixa de mensagens. Trocou o mouse pad, limpou o monitor com álcool, mudou o protetor de tela e as cores do Windows.
Na hora do almoço, aproveitou para não almoçar. Foi ao cabeleireiro. Abriu a Veja no lugar da Caras. Folheou de trás pra frente. Pediu para o cabeleireiro repartir o cabelo do outro lado. Retornando ao trabalho, "matou" uma tia velha e disse que precisava ir ao velório em Barbacena. Foi à sauna, depois ao cinema. Nenhum drama de consciência ao fazer isso em plena terça. Voltou pra casa duas horas mais cedo que o costume. No horário de sempre se recusara a voltar. Antes, comprou rosas para a esposa. Abriu a porta e flagrou a mulher com o seu chefe, que calçava os seus chinelos e bebia o seu conhaque. Os dois ajoelhados no chão do quarto, levando chicotadas do vizinho do 206, travestido de mulher-gato.
Não fez ruído nenhum. Do mesmo jeito que entrou, saiu. Ia deixar tudo como estava. Caso contrário perderia a mulher, teria que arrumar outro emprego e sairia nos jornais como assassino de traveco. Voltou para a empresa. As flores deixou com a Laura, recepcionista. Com um cartãozinho discreto, confirmando o motel para depois das seis e meia. Como sempre.
* Redator publicitário há quase 30 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”
* Por Marcelo Sguassábia
Sucedeu que ele acordou com aquela ideia na cabeça: fazer tudo diferente do que estava acostumado. Tirar a vidinha do piloto automático. Lembrou daquele famoso pressuposto da programação neurolinguística, que aprendeu num curso rápido sobre o assunto: SE VOCÊ CONTINUAR A FAZER O QUE VEM FAZENDO, VAI CONTINUAR A OBTER O QUE VEM OBTENDO. A afirmação era óbvia, tão óbvia que parecia estúpido levá-la a sério. Até que caiu a ficha. E ele resolveu que aquele era o dia da guinada.
Começou na cama mesmo. Absteve-se da interminável sessão de bocejos e espreguiçamentos e de um salto pôs-se de pé. Fez trinta flexões, bem mais que as cinco de costume. Inverteu a ordem dos remédios - primeiro o da pressão, depois o complexo B.
Escovou os dentes começando pelos do fundo e terminando pelos da frente, exatamente como nunca tinha feito. Não se barbeou. Vestiu um terno verde e uma gravata prateada. Sentou-se à mesa, na cadeira da outra ponta. Ao invés de colocar na xícara bastante leite e um pouquinho de café, pôs muito café e quase nada de leite. Despediu-se da esposa com um beijo no rosto, e não na testa.
Quando saiu já ia fazendo o caminho de costume, mas a tempo pegou outro rumo.
Ligou o rádio do carro. Tirou da CBN e sintonizou num programa sertanejo. Parou no semáforo e dessa vez comprou as balinhas que o garoto ofereceu. Passou em frente à igreja e não fez o sinal da cruz. Estacionou o carro na vaga do chefe (ele nunca estava mesmo). Subiu pela escada, não ia se repetir tomando o elevador. Decidiu que não responderia nenhum e-mail, por isso nem abriu sua caixa de mensagens. Trocou o mouse pad, limpou o monitor com álcool, mudou o protetor de tela e as cores do Windows.
Na hora do almoço, aproveitou para não almoçar. Foi ao cabeleireiro. Abriu a Veja no lugar da Caras. Folheou de trás pra frente. Pediu para o cabeleireiro repartir o cabelo do outro lado. Retornando ao trabalho, "matou" uma tia velha e disse que precisava ir ao velório em Barbacena. Foi à sauna, depois ao cinema. Nenhum drama de consciência ao fazer isso em plena terça. Voltou pra casa duas horas mais cedo que o costume. No horário de sempre se recusara a voltar. Antes, comprou rosas para a esposa. Abriu a porta e flagrou a mulher com o seu chefe, que calçava os seus chinelos e bebia o seu conhaque. Os dois ajoelhados no chão do quarto, levando chicotadas do vizinho do 206, travestido de mulher-gato.
Não fez ruído nenhum. Do mesmo jeito que entrou, saiu. Ia deixar tudo como estava. Caso contrário perderia a mulher, teria que arrumar outro emprego e sairia nos jornais como assassino de traveco. Voltou para a empresa. As flores deixou com a Laura, recepcionista. Com um cartãozinho discreto, confirmando o motel para depois das seis e meia. Como sempre.
* Redator publicitário há quase 30 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”
Como diria um ministro inventor de palavras...tem
ResponderExcluircoisas que são "imexíveis".
Abraços
Os outros também devem ter assistido à mesma aula de Neurolinguística e já tinham começado as suas mudanças. Estava tão certinho que era preciso uma reviravolta para ir ao lugar de sempre: rotina. Ri de todas as mudanças, especialmente o traje discreto. Eu vou seguir-lhe os passos, porém não irei ao trabalho.
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