segunda-feira, 24 de janeiro de 2011




O pai dos pobres

* Por Marcos Alves


Era um cara popular. “Homem de carisma!” – garantiam os mais próximos. Apresentador de TV, fazia sucesso prometendo resolver os problemas dos humildes, dos “sem oportunidade, dos sem casa, sem-amor, sem-salário, sem-esperança”.

Atuava no varejo. Pinçava um desgraçado qualquer e o colocava diante das câmeras a implorar por ajuda, depois de destilar seu rosário de miséria, não ocasionalmente seguido de um choro incontido – tanto melhor para os números! Quando a “vítima” chora, aí é o momento de emendar um begezinho adequado, uma música bem triste para e-mo-cio-nar.

Se o convidado, ou convidada, começava a rir, reação natural pelo nervosismo de estar na TV, ao vivo, ele emendava: “É sem-vergonha!” – e o sonoplasta emenda outra música, agora com letra de duplo sentido, cheia de escárnio e palavrões.

Gargalhadas no estúdio – a claque era formada pelos técnicos, curiosos e amigos e parentes de convidados. Depois o apresentador muda de câmera e, em close (imagem fechada no rosto, quase um 3x4), pede silêncio. Vira-se para o convidado, agora em tom sério e com o semblante preocupado e pede para que ele relate o problema que o leva a procurar ajuda.

O miserável diz que está desempregado, a noiva espera uma criança para o mês que vem. Quer uma máquina de pipoca, um carrinho para trabalhar de ambulante. O apresentador ainda pergunta outras coisas antes de tecer um comentário fascista sobre a situação difícil desse “brasileiro sofrido”. Chama a atenção das autoridades, diz que isso não é possível, muda de câmera de novo e garante: vai resolver o problema do rapaz.

Termina o programa, o apresentador sai do estúdio sorridente. Com ar cansado diz que precisa ir embora rápido, tem compromissos importantes. Não vê a fila de gente esperando no corredor de entrada da emissora. Entra no carro, levanta uma nuvem de poeira antes de deixar o estacionamento e também não vê a outra fila, ainda maior, do pessoal que nem conseguiu entrar.

A audiência crescera geometricamente e o camarada faturava alto. Ele chegou dirigindo um carro velho, agora estava de camionete importada. Trocara também de apartamento, e “até de mulher” gostava de frisar. Vivia agora uma doce rotina de viagens, e despesas caras com roupas, restaurantes e hotéis.

Graças a um público fiel, sempre disposto a passar por uma ´humilhaçãozinha” para conseguir uma ajuda, se tornou o “Pai dos pobres”, diziam os fãs, alguns ali na fila interminável. “Vai atender a todos nós”, acreditavam.

“Será ?”, soprou uma voz fraca, no meio daquela gente toda. “Vai sim, ele disse que vai!”, respondeu uma defensora do homem, procurando saber de onde surgiu a dúvida. Veio de uma senhora sentada em uma cadeira de rodas, os braços finos, fracos, o rosto cansado e a alma desconfiada de tanta benevolência.

A necessidade de ter uma nova cadeira falou mais alto e lá estava ela, na fila. Era a terceira vez que vinha, em 2 meses, e ainda não tinha conseguido vaga na “Tribuna do Povo” – espécie de púlpito colocado no estúdio onde as pessoas falavam de seus problemas e faziam os pedidos.

Alguns meses passaram e a fila ficava cada vez maior. “Viu só aquilo?”, disse um produtor do programa. “Onde vai parar isso?”. “No topo, amigo. Só vai parar quando chegarmos ao topo”. A resposta foi dada pelo próprio apresentador, que entrou na redação depois de passar pelos pedintes protegido pelos vidros escuros do carro.

Mas a situação preocupava. A fila na porta da emissora não estava como nos outros dias. O atendimento era demorado e a maioria não ia ser atendida – nem se o programa ainda ficasse 10 anos no ar. Mas como comunicar isso àquela multidão?

O apresentador tem uma idéia. “Vamos amenizar o discurso, diminuir as doações. Depois a gente pensa em um novo ‘gancho’ para o programa, mas sem tanto assistencialismo, que esse negócio anda ficando muito caro. O empresário doa, mas depois exige merchandising e onde é que fica o meu? Cadê o meu?!”, falou, aos berros, como de costume.

Depois, continuou. “Saúde e emprego são problemas do governo. Se eles não dão jeito, a gente é que vai dar?” Vira-se para a assistente de produção e ordena: “Paula, vai lá fora e avisa que as inscrições foram suspensas por tempo indeterminado”.

A moça chega até o portão, mas nem consegue abrir a boca. As pessoas se jogam aos pés dela, mostram feridas, braços engessados, muletas, fotografias de pessoas convalescendo em leitos de hospitais, cartas mal-escritas, sujas e amarrotadas. Prestes a receber o diploma de jornalista, nunca esteve tão perto do desespero do povo brasileiro.

Paula não consegue cumprir a ordem e leva um esporro do apresentador. “Eu mesmo vou lá, não mando recado. Deixa comigo”, e saiu em direção ao portão da empresa. “Minha gente!” Não teve tempo de dizer a segunda frase, foi agarrado, puxado pela gravata, caiu no meio da rua. Ele também nunca havia sentido o cheiro do povo tão de perto.

Perdeu os óculos na queda, e teve uma visão embaçada das cartas, dos rostos, das mãos. Levantou-se, ajeitou os cabelos, a gravata, tirou o pó e levantou uma das mãos. Queria terminar logo aquilo. “A partir de segunda-feira, vocês não precisam mais vir aqui. Basta telefonar ou mandar um e-mail, peçam para seus filhos, sobrinhos, amigos... E dentro do possível, iremos atender a....”

De novo, não teve tempo de terminar a frase. Foi uma confusão total. Antes fiéis admiradores, as pessoas agora ficaram hostis, agressivas. O apresentador ao perceber que seus argumentos só aumentavam a ira daquela gente toda ergueu as mãos para a guarita, pediu ajuda dos seguranças. Mas todos estavam ocupados em proteger o patrimônio da empresa, no caso, os vidros da fachada ameaçados por paus e pedras nas mãos dos revoltosos.
Nada foi suficiente para convencer aquela gente a desistir. Os vidros foram quebrados, a sala de espera destruída. Um cenário de guerra: poltronas rasgadas, terminais de computador jogados no chão, pedaços de madeira, plástico e materiais usados em cenários, tudo espalhado, pisoteado, inutilizado.

“Essa gente não tem educação mesmo”. A boca costurada dificulta a pronúncia e a compreensão, mas os filhos e a mulher do apresentador entenderam a frase. Nem na cama do hospital, ele alterou o estilo.


* Jornalista, www.marcos-alves.blogspot.com

Um comentário:

  1. Brincar com as tragédias pessoais dá nisso.
    Há quem se sinta um deus, onipotente e livre
    de julgamentos.
    Ótimo texto.
    Abraços

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