Palavras benditas, palavras malditas
As palavras, como os homens que as criaram, em qualquer dos milhares de idiomas existentes, guardam certa hierarquia entre si. Algumas são nobres, respeitáveis e nos inspiram à simples pronúncia, mesmo que isoladas, esparsas ou fora do contexto. Outras, nomeiam vícios, taras, horrores e perversidades. São a ralé dos dicionários. Outras, ainda, chegam a ser interditas pela moral, por soarem ofensivas (os xingamentos e palavrões). São as marginais do idioma.
A palavra amor, por exemplo, traz à lembrança o rei dos sentimentos, aquele que, quando temos, no torna semelhantes (jamais iguais) ao Criador. Fé, esperança, caridade, alegria e felicidade são algumas outras que compõem esse séqüito de nobreza.
O poeta Alexandre O’Neill (que, a despeito do sobrenome, nasceu em Portugal) foi extremamente feliz ao constatar, nestes versos do poema “Há palavras que nos beijam”: “Há palavras que nos beijam/como se tivessem boca./Palavras de amor, de esperança,/de imenso amor, de esperança louca”. Há mesmo. Sua simples pronúncia traz-nos, à mente, a bondade, a beleza, a nobreza e a transcendência.
Há, todavia, uma palavra que designa aquela que deveria ser encarada como uma das maiores (senão a maior) das virtudes humanas e que, no entanto, dado seu uso inadequado e distorcido, chega a causar arrepios em muitas pessoas. Refiro-me ao termo “moral”.
Não há como contestar a necessidade desse conceito em qualquer sociedade, seja familiar, seja nacional. Trata-se de um conjunto de normas tácitas, implícitas, gerais, que se respeitado, assegura os bons costumes e a própria civilização.
Contudo, em nome dessa mesma moral, foram, são e infelizmente serão cometidos os maiores crimes e as mais covardes perseguições ao longo da história, notadamente em tempos de guerra. Esse uso inadequado e distorcido desgastou, sem dúvida, a palavra, embora não deva e nem possa desgastar, e nem negar a necessidade, da sua prática. Trata-se do freio indispensável à sempre latente animalidade humana, aos baixos instintos e à prevalência da força sobre a razão.
Esse uso inadequado do termo, levou o escritor Henry Miller a desabafar, em determinado trecho do livro “O mundo do sexo”, da seguinte maneira: “Ah, a palavra ‘moral’! Sempre que aparece, penso nos crimes que foram cometidos em seu nome. As confusões que este termo engendrou abarcam quase toda a história das perseguições movidas pelo homem ao seu semelhante. Para além do fato de não existir apenas uma moral, mas muitas, é evidente que em todos os países, seja qual for a moral dominante, há uma moral para o tempo de paz e uma moral para a guerra. Em tempo de guerra tudo é permitido, tudo é perdoado. Ou seja, tudo o que de abominável e infame o lado vencedor praticou. Os vencidos, que servem sempre de bode expiatório, ‘não têm moral’”.
Errado, todavia, não é, obviamente, esse conjunto de normas não-estatuídas formalmente (não há, por exemplo, nenhum código escrito a respeito, como os legais, do Direito Penal, Civil, Comercial etc.), mas quem o distorce, manipula, falsifica e corrompe e faz dele mero instrumento para fins escusos e torpes. Ainda assim, a palavra ficou corrompida (posto que não, obviamente, seu verdadeiro significado).
O escritor e jornalista Russell Baker, com sua experiência de mais de meio século de exercício da profissão (além de 16 livros publicados), trouxe à tona, em um ensaio (cujo título não me recordo), o que classificou de “duplos padrões de vergonha”. Não se limitou a identificá-los, como até demarcou sua gênese. E, convenhamos, eles estão, atualmente, em pleno vigor, caracterizando, mais do que nunca, o perpétuo (posto que estúpido) conflito de gerações.
Baker escreveu a propósito: “Este padrão de moral dupla surgiu nos anos 60, quando um homem com mais de 30 anos precisava se sentir envergonhado por ser um ‘velho sujo’, quando se interessava pelo espetáculo oferecido por todas aquelas mulheres jovens vivendo aquela década de muito entretenimento em variados e avançados estados de nudez. Os homens com menos de 30 anos que observavam estes estados variados de nudez não precisavam conviver com a culpa de serem ‘velhos sujos’. Os padrões da vergonha não se aplicavam a eles”.
É por estas e outras que a palavra “moral” se tornou “maldita” aos olhos de quem é bem-informado e sincero e tem na honestidade o alicerce para manter de pé o conjunto de valores testados e aprovados pelo tempo, que nos faz humanos e nos confere foros de racionalidade e civilidade.
Convém, todavia, “limpá-la”. É necessário fazer com que retorne à sua pureza original e potencial grandeza, que volte a ostentar o status de nobreza e de respeitabilidade (como o amor, a fé, a esperança, a caridade, a alegria, a felicidade etc.) que nunca deveria ter perdido. Não podemos permitir que se torne, para sempre, aos olhos das futuras gerações, mais uma infeliz integrante da deprimente “ralé” dos dicionários (e das nossas vidas, evidentemente).
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
As palavras, como os homens que as criaram, em qualquer dos milhares de idiomas existentes, guardam certa hierarquia entre si. Algumas são nobres, respeitáveis e nos inspiram à simples pronúncia, mesmo que isoladas, esparsas ou fora do contexto. Outras, nomeiam vícios, taras, horrores e perversidades. São a ralé dos dicionários. Outras, ainda, chegam a ser interditas pela moral, por soarem ofensivas (os xingamentos e palavrões). São as marginais do idioma.
A palavra amor, por exemplo, traz à lembrança o rei dos sentimentos, aquele que, quando temos, no torna semelhantes (jamais iguais) ao Criador. Fé, esperança, caridade, alegria e felicidade são algumas outras que compõem esse séqüito de nobreza.
O poeta Alexandre O’Neill (que, a despeito do sobrenome, nasceu em Portugal) foi extremamente feliz ao constatar, nestes versos do poema “Há palavras que nos beijam”: “Há palavras que nos beijam/como se tivessem boca./Palavras de amor, de esperança,/de imenso amor, de esperança louca”. Há mesmo. Sua simples pronúncia traz-nos, à mente, a bondade, a beleza, a nobreza e a transcendência.
Há, todavia, uma palavra que designa aquela que deveria ser encarada como uma das maiores (senão a maior) das virtudes humanas e que, no entanto, dado seu uso inadequado e distorcido, chega a causar arrepios em muitas pessoas. Refiro-me ao termo “moral”.
Não há como contestar a necessidade desse conceito em qualquer sociedade, seja familiar, seja nacional. Trata-se de um conjunto de normas tácitas, implícitas, gerais, que se respeitado, assegura os bons costumes e a própria civilização.
Contudo, em nome dessa mesma moral, foram, são e infelizmente serão cometidos os maiores crimes e as mais covardes perseguições ao longo da história, notadamente em tempos de guerra. Esse uso inadequado e distorcido desgastou, sem dúvida, a palavra, embora não deva e nem possa desgastar, e nem negar a necessidade, da sua prática. Trata-se do freio indispensável à sempre latente animalidade humana, aos baixos instintos e à prevalência da força sobre a razão.
Esse uso inadequado do termo, levou o escritor Henry Miller a desabafar, em determinado trecho do livro “O mundo do sexo”, da seguinte maneira: “Ah, a palavra ‘moral’! Sempre que aparece, penso nos crimes que foram cometidos em seu nome. As confusões que este termo engendrou abarcam quase toda a história das perseguições movidas pelo homem ao seu semelhante. Para além do fato de não existir apenas uma moral, mas muitas, é evidente que em todos os países, seja qual for a moral dominante, há uma moral para o tempo de paz e uma moral para a guerra. Em tempo de guerra tudo é permitido, tudo é perdoado. Ou seja, tudo o que de abominável e infame o lado vencedor praticou. Os vencidos, que servem sempre de bode expiatório, ‘não têm moral’”.
Errado, todavia, não é, obviamente, esse conjunto de normas não-estatuídas formalmente (não há, por exemplo, nenhum código escrito a respeito, como os legais, do Direito Penal, Civil, Comercial etc.), mas quem o distorce, manipula, falsifica e corrompe e faz dele mero instrumento para fins escusos e torpes. Ainda assim, a palavra ficou corrompida (posto que não, obviamente, seu verdadeiro significado).
O escritor e jornalista Russell Baker, com sua experiência de mais de meio século de exercício da profissão (além de 16 livros publicados), trouxe à tona, em um ensaio (cujo título não me recordo), o que classificou de “duplos padrões de vergonha”. Não se limitou a identificá-los, como até demarcou sua gênese. E, convenhamos, eles estão, atualmente, em pleno vigor, caracterizando, mais do que nunca, o perpétuo (posto que estúpido) conflito de gerações.
Baker escreveu a propósito: “Este padrão de moral dupla surgiu nos anos 60, quando um homem com mais de 30 anos precisava se sentir envergonhado por ser um ‘velho sujo’, quando se interessava pelo espetáculo oferecido por todas aquelas mulheres jovens vivendo aquela década de muito entretenimento em variados e avançados estados de nudez. Os homens com menos de 30 anos que observavam estes estados variados de nudez não precisavam conviver com a culpa de serem ‘velhos sujos’. Os padrões da vergonha não se aplicavam a eles”.
É por estas e outras que a palavra “moral” se tornou “maldita” aos olhos de quem é bem-informado e sincero e tem na honestidade o alicerce para manter de pé o conjunto de valores testados e aprovados pelo tempo, que nos faz humanos e nos confere foros de racionalidade e civilidade.
Convém, todavia, “limpá-la”. É necessário fazer com que retorne à sua pureza original e potencial grandeza, que volte a ostentar o status de nobreza e de respeitabilidade (como o amor, a fé, a esperança, a caridade, a alegria, a felicidade etc.) que nunca deveria ter perdido. Não podemos permitir que se torne, para sempre, aos olhos das futuras gerações, mais uma infeliz integrante da deprimente “ralé” dos dicionários (e das nossas vidas, evidentemente).
Boa leitura.
O Editor.
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Desconheço alguma palavra que tenha perdido o sentido original e fosse resgatada, mas foi uma tentativa nobre. E que a palavra "moral" restabeleça a sua nobreza.
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