Que não se parta o encanto de Carmem
* Por Eduardo Murta
É no pai, no filho, no espírito santo e no que mais lhe contarem que crê Dona Carmem. Notem como, fazendo as unhas no único salão do lugar, tesou os ouvidos para confirmar os detalhes da reportagem. Em meio ao vozerio da mulherada, faz a leitura labial do locutor. Falam de um homem chamado Bin Laden. Demonizam. Satanizam. A escuridão se avizinhando, dormiria com travas nas janelas, e portas cerradas em duas voltas de chaves.
Até às cabras permitiu que pernoitassem na cozinha. Conferiu a tranca do galinheiro e reforçou os ferrolhos da despensa. Houvesse quarentena, toque de recolher, estaria pronta. Já fantasiava o tal sujeito adentrando a pracinha da pequena Biribiri, rompendo as montanhas, Diamantina abaixo. Cuidaria de se proteger. Encomendou sacadas de areia para as barricadas. Duas semanas à frente, nada tendo acontecido, foi desarmando o circo e o espírito.
Dormia de novo com os janelões abertos, abandonara as orações com os joelhos penitenciosos sobre o milho e mesmo a espingarda polveira pusera de volta ao porão. Retornava à vidinha de regar as plantas, fazer o tricô, uma fofoca ligeira e beber café ralo à varanda no fim de tarde.
Seguiu nessa malemolência insossa, até dar com a madrugada em que sonhou com Elvis. Seria capaz de descrever o tom das lantejoulas que levava sobre a roupa, o odor da brilhantina sustentando as mechas. Amava tanto, que se candidataria a lamber-lhe as costeletas empapadas em suor, fosse seu único pedido. Mas queria mais, claro. Sonhando, se viu em formas sensuais, exibindo curvas dos seios e coxas, enquanto ele repetia o refrão... Despertou ainda recordando “It`s now or never” e sob a convicção de que do primeiro orgasmo octogenário jamais se esqueceria.
Não guardaria aquele sentimento. Foi logo contar tudo a Marilu, amiga da velha guarda. Relatou depois ponto a ponto a Jurema, costureira. Inovou nos pormenores a Zuleika, biscoiteira. E exagerou na pimenta erótica a Jacira, entre ovos e tomates da quitanda. Quando apontou na porta do armarinho, Balbina não só já sabia da história, como adicionara cenas picantes por conta própria.
Ah, bom... E tinha novidades. Escutara mais de uma vez nos programas de tevê e carecia revelar a Carmem. Preparasse, mais que os ouvidos, o coração. Ensaiou o tempero da frase, como fosse revelar um segredo. Simulou, retroagiu, diante da expectativa angustiante da amiga, e finalmente se soltou. Quase soletrando: “Elvis não morreu”. Repetiu baixinho: “Elvis não morreu”. Mas, vivo, não estaria por aqueles portais do Jequitinhonha.
Juntou ofegante os vestidos em florais, perfumes de catálogos de mascates, sapato de batizado, e rumou para a capital. Prima Ambrosina a receberia na rodoviária, ainda atordoada sobre as razões que a haviam levado até ali. Tomaram o táxi e, no crochê das conversas, vislumbrou o crachá do motorista. Elvis da Silveira. Tremeu. Haveria de ser o sopro do destino. Conferiu as mãos, enrugadas como as dela. Sem alianças. Suspirou. Mirou longo no cabelo já branquinho, a barriga denunciando as saliências. Fazia mal, não.
Despejou a prima na Praça Sete. E não girou em círculos ao elegê-lo candidato a amante tardio. Foi direto ao ponto. O taxista sorriu, assentindo. Como a esperasse por todos aqueles anos. E ela interpôs a vírgula: que fosse à sua maneira. Ele replicou: que fosse ao gosto de ambos. E na noite daquela quarta, eram Elvis, ao estilo Presley, e Carmem, imitando a Miranda, subindo as escadinhas do hotel. Dedos entrelaçados. Trajes de aluguel. E, no fundo, experimentando um temor leve de se despirem das fantasias. A que o encanto, belo feito um desejo novo, jamais se partisse.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
* Por Eduardo Murta
É no pai, no filho, no espírito santo e no que mais lhe contarem que crê Dona Carmem. Notem como, fazendo as unhas no único salão do lugar, tesou os ouvidos para confirmar os detalhes da reportagem. Em meio ao vozerio da mulherada, faz a leitura labial do locutor. Falam de um homem chamado Bin Laden. Demonizam. Satanizam. A escuridão se avizinhando, dormiria com travas nas janelas, e portas cerradas em duas voltas de chaves.
Até às cabras permitiu que pernoitassem na cozinha. Conferiu a tranca do galinheiro e reforçou os ferrolhos da despensa. Houvesse quarentena, toque de recolher, estaria pronta. Já fantasiava o tal sujeito adentrando a pracinha da pequena Biribiri, rompendo as montanhas, Diamantina abaixo. Cuidaria de se proteger. Encomendou sacadas de areia para as barricadas. Duas semanas à frente, nada tendo acontecido, foi desarmando o circo e o espírito.
Dormia de novo com os janelões abertos, abandonara as orações com os joelhos penitenciosos sobre o milho e mesmo a espingarda polveira pusera de volta ao porão. Retornava à vidinha de regar as plantas, fazer o tricô, uma fofoca ligeira e beber café ralo à varanda no fim de tarde.
Seguiu nessa malemolência insossa, até dar com a madrugada em que sonhou com Elvis. Seria capaz de descrever o tom das lantejoulas que levava sobre a roupa, o odor da brilhantina sustentando as mechas. Amava tanto, que se candidataria a lamber-lhe as costeletas empapadas em suor, fosse seu único pedido. Mas queria mais, claro. Sonhando, se viu em formas sensuais, exibindo curvas dos seios e coxas, enquanto ele repetia o refrão... Despertou ainda recordando “It`s now or never” e sob a convicção de que do primeiro orgasmo octogenário jamais se esqueceria.
Não guardaria aquele sentimento. Foi logo contar tudo a Marilu, amiga da velha guarda. Relatou depois ponto a ponto a Jurema, costureira. Inovou nos pormenores a Zuleika, biscoiteira. E exagerou na pimenta erótica a Jacira, entre ovos e tomates da quitanda. Quando apontou na porta do armarinho, Balbina não só já sabia da história, como adicionara cenas picantes por conta própria.
Ah, bom... E tinha novidades. Escutara mais de uma vez nos programas de tevê e carecia revelar a Carmem. Preparasse, mais que os ouvidos, o coração. Ensaiou o tempero da frase, como fosse revelar um segredo. Simulou, retroagiu, diante da expectativa angustiante da amiga, e finalmente se soltou. Quase soletrando: “Elvis não morreu”. Repetiu baixinho: “Elvis não morreu”. Mas, vivo, não estaria por aqueles portais do Jequitinhonha.
Juntou ofegante os vestidos em florais, perfumes de catálogos de mascates, sapato de batizado, e rumou para a capital. Prima Ambrosina a receberia na rodoviária, ainda atordoada sobre as razões que a haviam levado até ali. Tomaram o táxi e, no crochê das conversas, vislumbrou o crachá do motorista. Elvis da Silveira. Tremeu. Haveria de ser o sopro do destino. Conferiu as mãos, enrugadas como as dela. Sem alianças. Suspirou. Mirou longo no cabelo já branquinho, a barriga denunciando as saliências. Fazia mal, não.
Despejou a prima na Praça Sete. E não girou em círculos ao elegê-lo candidato a amante tardio. Foi direto ao ponto. O taxista sorriu, assentindo. Como a esperasse por todos aqueles anos. E ela interpôs a vírgula: que fosse à sua maneira. Ele replicou: que fosse ao gosto de ambos. E na noite daquela quarta, eram Elvis, ao estilo Presley, e Carmem, imitando a Miranda, subindo as escadinhas do hotel. Dedos entrelaçados. Trajes de aluguel. E, no fundo, experimentando um temor leve de se despirem das fantasias. A que o encanto, belo feito um desejo novo, jamais se partisse.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
Dona Carmem foi rápida, mais vale um
ResponderExcluirElvis nas mãos do que aquele
que embala os sonhos...
Abração Murta