domingo, 16 de janeiro de 2011




Ligações inoportunas

* Por João Batista Melo

Era uma das mais importantes cenas do filme. O herói conseguiu descobrir onde morava o espião inimigo e, com aqueles truques que somente funcionam no cinema, deu um jeito de entrar no apartamento numa hora em que o vilão não estava lá. Andando na penumbra, examinou as gavetas em busca das provas da traição do espião ao seu país. A todo instante, olhava em volta para não ser flagrado pela chegada do dono do apartamento. O silêncio da noite era total, ouvia-se apenas os passos abafados do herói através dos cômodos. A platéia no cinema também estava absolutamente imóvel, hipnotizada pelo silêncio do filme.

Então, de repente, um telefone tocou umas três vezes. Segurando no encosto do braço da poltrona, dei um pequeno pulo de susto. Porém, na tela, o herói não se perturbou como se não tivesse ouvido nada. E realmente ele não tinha. Pois, então, percebi que o telefone chamara, não no filme, mas ao meu lado. Um espectador cutucava os bolsos à procura do telefone celular e, em seguida, começava a cochichar num tom que, num salão silencioso, ganhava um volume maior do que o normal.

“Eu estou no cinema...”, ele tentava murmurar, mas a voz chegava em límpido som até meus ouvidos. “Depois eu te ligo”.

Alguém disse alguma coisa do outro lado da linha e imaginei que a ligação terminaria. No filme, o trinco da porta da sala se mexeu, mas minha atenção já estava dividida. “Mas quem disse que ele podia fazer isso?”, o homem no telefone perguntava ao seu interlocutor, agora aumentando o tom da voz. “Deixa eu sair daqui que a gente olha isso...”

E, por aí em diante, a conversa prosseguiu pelo que pareceu longos minutos. Nesse meio tempo, o herói encontrou-se com a namorada, trocaram beijos, falaram alguma coisa que não pude acompanhar, pois misturava o diálogo da história com o do meu vizinho de cadeira: “Eu adoro você... precisamos impedir a assinatura desse documento... aqui não é um bom lugar para ficarmos juntos... se ganharmos uma comissão de dez por cento, podemos viabilizar o negócio... snac!!!... preciso desligar agora, estou perdendo o filme...”

Claro, ele perdia o filme, e eu não, nem os outros que ficavam virando a cabeça para trás, à espera de que a olhada hostil fosse suficiente para fazer o executivo noturno desligar aquele aparelhinho. Quando enfim ele deu adeus ao seu interlocutor, fosse ele quem fosse, levantei-me da cadeira, passei no carrinho de pipocas e fui fazer outra coisa. O filme já tinha perdido a graça. Lamentei não ter o número do telefone do cidadão apenas para acabar de tumultuar o resto do seu filme. Com alguma sorte, ele seria expulso da sala de exibições.

Já se evoluiu muito no que poderíamos chamar de cidadania do celular. Mas muitas pessoas ainda pensam que nossos ouvidos estão a sua disposição e que estamos interessados em conhecer os seus negócios, problemas familiares ou preferências sexuais.

*Mestre em Multimeios, pela Unicamp, fez crítica de cinema e literatura para diversos jornais e dirigiu os curtas “A quem possa interessar” e “Tampinha”. É autor das coletâneas de contos “Um pouco mais de swing” (Rocco), “As baleias do Saguenay” (Rocco) e “O Inventor de Estrelas” (Lê) e do romance “Patagônia” (Rocco), e participou da antologia “Geração 90: Manuscritos de Computador” (Boitempo).

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