Caminhar para poder ver o mundo
* Por Mara Narciso
Assim como há o lado oculto da lua, há também o lado cego das pessoas. A civilização ocidental neurotizada não caminha, corre não se sabe bem para onde, mas, desconfia-se, para a própria ruína, e assim, desenvolveu uma cegueira para algumas coisas. Quem não anda a pé não tem como enxergar as trivialidades da cidade.
Montes Claros, disse o censo de 2010, mas não foi senso-comum (Uberaba briga pela colocação), ocupa o 6º lugar em população em Minas Gerais, com seus 361 mil habitantes. As ruas estreitas estão lotadas de motos e carros, e esses veículos tornaram-se um problema quando se chega ao destino. O que fazer com eles? Mas continuam chegando mais e mais, outro motivo para desapearmos e andarmos.
Há avenidas onde é possível, especialmente nos fins de semana, caminhar quase livremente, sem grandes sustos, e com isso se pode ver o que não se vê de outras formas. É manhã alta, mais de oito horas do horário de verão, e uns poucos carros passam velozes em direção aos clubes, fazendas, ou ainda retornando da noitada. É domingo, e as músicas que saem dos veículos retumbam ruas afora, naquela habitual desobediência civil. Já disseram que quem não gosta do barulho da nossa “metrópole” (temos uma catedral metropolitana), “deveria se mudar para a roça, lugar de gente atrasada”. Mas convenhamos, assim como excesso populacional não é sinal de desenvolvimento, pelo contrário, também poluição sonora não é.
Vem lá do outro lado do cruzamento uma moça morena de cabelos pretos longos. Está de sapatos de salto alto vermelhos, vestido preto de alças, uma bolsa pequena e outra maior, que poderá conter uma muda de roupa. O toc-toc dos sapatos se faz ouvir ao longe. Aborda um caminhante e pergunta para que lado é o centro da cidade (distante uns três quilômetros). Acima do leve barulho do trânsito e dos saltos, fala, enfim, algo coerente: “Estou perdida!”
O Parque Guimarães Rosa está transbordante de natureza. Há doze anos estava quase pelado. Foram plantadas mais árvores nativas no bosque incipiente, e lá estão para o gosto dos montesclarenses o verde, as cigarras e o canto dos passarinhos, atrás das grades altas, também verdes, que os protegem.
Um rapaz forte passa levando três cães de madame, amarrados pela coleira. Deve ser um profissional dog-walker, que ainda não tinha sido visto por aqui. Atrás deles quatro vai um cão vira-latas, cheirando a retaguarda dos demais.
O mato na área marginal dessa avenida sanitária, onde corre o rio, está com mais de um metro. Muitas árvores nasceram no canal, como também algumas barreiras se formaram, ao se desprenderem das laterais, e ameaçam bloquear a correnteza numa chuva mais forte. Tudo é prenúncio de possibilidade de agravamento de enchente, caso venha a ocorrer. Isso está assim há mais de um ano e ainda não foi vista nenhuma ação do poder público. A indiferença impera.
Pelo tamanho da população e pelo tanto que a televisão conclama as pessoas para um giro, pouca gente é vista andando domingo. Segunda-feira é o dia mais movimentado da semana. Após os abusos de alimentos e bebida no domingo, costuma-se ver no dia seguinte mais gente cheia de bons propósitos de, agora sim, passar a fazer exercícios físicos. Pelo menos até terça-feira, dia em que, morrendo de calor, desiste dizendo que “esse negócio de suar não é prá mim”.
Adiante, mostras do mau comportamento populacional e do descaso dos administradores vão se perfilando: buracos nas ruas, lixo em local impróprio, muros arriados, dejetos de animais pelo caminho e direção perigosa. Mas é preciso ver as coisas boas. O Shopping Center parece que agora vai deslanchar. Do outro lado da rua algumas instituições de ensino superior trazem o progresso através do saber, e gente educada, imagina-se, deverá se comportar melhor.
Então um poste da CEMIG é observado. Está com a base totalmente destruída. Um carro deve ter batido nele na madrugada, e o motorista fugiu. Estranhamente, o poste não está desviado do seu eixo principal. Desafia a gravidade e está ao lado de onde esteve, porém de pé, e sem se entortar. A física foi caprichosa e fez algo impensável, que esconde um perigo iminente de queda e desastre. Melhor apressar e avisar à dona do poste, dar detalhes, endereço da ameaça e o número de conta de luz do denunciante. Após longa conversa, enfim, prometeram enviar socorro.
Motorizados somos cegos para detalhes. Veja aí, coisas que só são vistas numa caminhada!
* Médica, jornalista e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.
* Por Mara Narciso
Assim como há o lado oculto da lua, há também o lado cego das pessoas. A civilização ocidental neurotizada não caminha, corre não se sabe bem para onde, mas, desconfia-se, para a própria ruína, e assim, desenvolveu uma cegueira para algumas coisas. Quem não anda a pé não tem como enxergar as trivialidades da cidade.
Montes Claros, disse o censo de 2010, mas não foi senso-comum (Uberaba briga pela colocação), ocupa o 6º lugar em população em Minas Gerais, com seus 361 mil habitantes. As ruas estreitas estão lotadas de motos e carros, e esses veículos tornaram-se um problema quando se chega ao destino. O que fazer com eles? Mas continuam chegando mais e mais, outro motivo para desapearmos e andarmos.
Há avenidas onde é possível, especialmente nos fins de semana, caminhar quase livremente, sem grandes sustos, e com isso se pode ver o que não se vê de outras formas. É manhã alta, mais de oito horas do horário de verão, e uns poucos carros passam velozes em direção aos clubes, fazendas, ou ainda retornando da noitada. É domingo, e as músicas que saem dos veículos retumbam ruas afora, naquela habitual desobediência civil. Já disseram que quem não gosta do barulho da nossa “metrópole” (temos uma catedral metropolitana), “deveria se mudar para a roça, lugar de gente atrasada”. Mas convenhamos, assim como excesso populacional não é sinal de desenvolvimento, pelo contrário, também poluição sonora não é.
Vem lá do outro lado do cruzamento uma moça morena de cabelos pretos longos. Está de sapatos de salto alto vermelhos, vestido preto de alças, uma bolsa pequena e outra maior, que poderá conter uma muda de roupa. O toc-toc dos sapatos se faz ouvir ao longe. Aborda um caminhante e pergunta para que lado é o centro da cidade (distante uns três quilômetros). Acima do leve barulho do trânsito e dos saltos, fala, enfim, algo coerente: “Estou perdida!”
O Parque Guimarães Rosa está transbordante de natureza. Há doze anos estava quase pelado. Foram plantadas mais árvores nativas no bosque incipiente, e lá estão para o gosto dos montesclarenses o verde, as cigarras e o canto dos passarinhos, atrás das grades altas, também verdes, que os protegem.
Um rapaz forte passa levando três cães de madame, amarrados pela coleira. Deve ser um profissional dog-walker, que ainda não tinha sido visto por aqui. Atrás deles quatro vai um cão vira-latas, cheirando a retaguarda dos demais.
O mato na área marginal dessa avenida sanitária, onde corre o rio, está com mais de um metro. Muitas árvores nasceram no canal, como também algumas barreiras se formaram, ao se desprenderem das laterais, e ameaçam bloquear a correnteza numa chuva mais forte. Tudo é prenúncio de possibilidade de agravamento de enchente, caso venha a ocorrer. Isso está assim há mais de um ano e ainda não foi vista nenhuma ação do poder público. A indiferença impera.
Pelo tamanho da população e pelo tanto que a televisão conclama as pessoas para um giro, pouca gente é vista andando domingo. Segunda-feira é o dia mais movimentado da semana. Após os abusos de alimentos e bebida no domingo, costuma-se ver no dia seguinte mais gente cheia de bons propósitos de, agora sim, passar a fazer exercícios físicos. Pelo menos até terça-feira, dia em que, morrendo de calor, desiste dizendo que “esse negócio de suar não é prá mim”.
Adiante, mostras do mau comportamento populacional e do descaso dos administradores vão se perfilando: buracos nas ruas, lixo em local impróprio, muros arriados, dejetos de animais pelo caminho e direção perigosa. Mas é preciso ver as coisas boas. O Shopping Center parece que agora vai deslanchar. Do outro lado da rua algumas instituições de ensino superior trazem o progresso através do saber, e gente educada, imagina-se, deverá se comportar melhor.
Então um poste da CEMIG é observado. Está com a base totalmente destruída. Um carro deve ter batido nele na madrugada, e o motorista fugiu. Estranhamente, o poste não está desviado do seu eixo principal. Desafia a gravidade e está ao lado de onde esteve, porém de pé, e sem se entortar. A física foi caprichosa e fez algo impensável, que esconde um perigo iminente de queda e desastre. Melhor apressar e avisar à dona do poste, dar detalhes, endereço da ameaça e o número de conta de luz do denunciante. Após longa conversa, enfim, prometeram enviar socorro.
Motorizados somos cegos para detalhes. Veja aí, coisas que só são vistas numa caminhada!
* Médica, jornalista e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.
Eu adoro caminhar. Sempre que posso, não perco a oportunidade. A caminhada incita à reflexão e nos faz, como bem lembra a Dra. Mara, ver o que está aquém ou além. Valeu, Mara. Tanto o texto quanto o passeio por Montes Claros. Um beijo pra você.
ResponderExcluirMara,
ResponderExcluiré preciso ver o lado bom das coisas. Eu AMO andar. Sou uma andarilha. Sou capaz de andar horas.
Caminhar então no calçadão é fantástico. Com o por do sol, melhor coisa não há.
Só faço de vez em quando, pois não moro perto da praia. Mas ando por onde moro e ando muito. Caminho.
Pessoa dizia que " Navegar é preciso". Tá aí. Eu digo que " Caminhar é preciso".
Como sempre, excelente texto.
Beijão
Marcelo e Celamar, os comentários de vocês são preciosos complementos do texto. Ampliam a minha visão do tema. Muito obrigada!
ResponderExcluirQuando jovem já atravassei bairros distantes do Rio a pé (como de Bonsucesso ao Méier). Hoje, já não tenho mais pique. Também faz tempo que não escrevo uma boa crônica.
ResponderExcluirAgradeço Gustavo a leitura e o comentário. Textos leves, sem grandes reflexões, podem surpreender na repercussão. Como sempre, o que é bom para um não é bom para outro.Continuo lendo os seus.
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