sexta-feira, 28 de janeiro de 2011




P E P E *


** Por Urariano Mota


Pepe iria passar aquela manhã olhando nomes de cidades nos guichês, à maneira de um enfermo condenado que num restaurante lê o menu, cifrado de pratos atraentes, embora saiba que seu estado já não lhe deixa opções. O melhor que lhe poderia ocorrer era ser agarrado, preso, ele se disse. E se pôs sentado, à espera, aguardando a sua hora, sem ter comprado um só bilhete. “Atenção, senhores passageiros com destino a Natal, com destino ao Rio de Janeiro, dirijam-se à plataforma ...”. Custódia, Doi-Codi, São Paulo, Dops, que diferença? Malas, crianças, adultos, movem-se obedientes à regência da voz metálica que anuncia os embarques. Névoa, sonâmbula, ou luz, febril - de uma forma ou de outra, ilusão.

“Eu vou ser morto”, pensou em se dizer. “Eu posso ser morto”, ele se disse. Para concluir em voz alta: - Isto é concreto. “E se eu me entregasse?”. Cravou os olhos num alto-falante, ainda que não o percebesse. “Eu posso me entregar. O que é que me impede? Ninguém tem força para me proibir. Tranquilo. Eles não precisam saber. Eu digo depois que me pegaram, que caí. Preso aqui mesmo na rodoviária. Faz sentido. Eu me entrego e acabo de vez com este pesadelo. Não é crime, é sobrevivência! É a lei natural. Todos têm que se virar. Porra, como é que isso não me ocorreu antes? Não tem tribunal nenhum, Pepe. Eu não vou ser o primeiro nem o último”. E se voltou sobre si mesmo, encolhendo as pernas, cruzando os braços no ventre, fitando a névoa que eram os rostos imprecisos na rodoviária. “Vejamos. Eu chego na Secretaria de Segurança e digo, ‘eu sou Pepe, não quero mais nada com a luta, tô arrependido. Quero ser um jovem comum, sem compromisso, alienado’. A repressão se dá por satisfeita”. Mas ele próprio, Pepe, não se deu por satisfeito com a saída. “Bem. E se, e se ...” . E com tantos “se”s, em cadeia, vieram-lhe à mente imagens que já não eram palavras. Que ele não ousava dizer-se. Sentiu espaços fundos, quartos sem limites, escuros. Nesses quartos ele sofreria uma angústia sem guarida nem eixo de justiça. Afogamentos, descargas elétricas, pulmões e rins perfurados, sem nem um tiro de misericórdia. As palavras não lhe saíam porque tenazes brutas apertavam-no. Sua língua havia sido cortada. E no entanto ele queria falar. E as palavras, que não dizia, eram: e se, depois de toda abjeção, não o recebessem com, talvez, vejamos, afago? E se ele, depois de se entregar, dele exigissem mais, mais e mais, para, depois de toda delação, atirarem-lhe o prêmio de uma cova, onde ele cairia como uma trouxa, suja, de carnes amontoadas?

Sentiu náusea. De si. Primeiro ele se disse: “é o álcool, de ontem”. E variando entre a lembrança do álcool e a visão da trouxa de roupa, cuja única semelhança com o seu Pepe na rodoviária era uma cabeça machucada, um engulho lhe veio à garganta. Ergueu o rosto, procurando o ar que sofreasse o vômito. Levantou-se para andar de um extremo a outro dos guichês da estação. Pedia, esperava, implorava um acontecimento extraordinário: um terremoto, uma chuva de raios, o céu se abrindo numa tempestade de mar descido da atmosfera. Uma catástrofe, que jogasse a todos numa única vala, de solidária desgraça. Uma onda que arrombasse as portas das Bastilhas. E porque o mundo não é fruto da vontade, mesmo para um indivíduo que está em desespero, nada ocorria. A massa ia e vinha, indiferente, embarcava e desembarcava, como se isso e assim pudesse continuar a fazer nos próximos trinta milênios. Pois a dor, e disso Pepe não sabia, a dor que não é espetáculo, que não vira escândalo, dor que não é desnudamento público sem pejo, como poderá ser vista? Como receber empatia, solidariedade, como seria adivinhado um indivíduo barbudo, indo e vindo, ao largo dos guichês de uma rodoviária? “Estúpidos!” Pepe se disse. “O mundo pega fogo e nem tomam conhecimento”.

Dois homens de paletó e gravata apresentaram-se, cortando-lhe os passos e as reflexões. Vale dizer, pelo que lhe pareceu, desceram à sua frente. O mais baixo intimou-o:

- Documentos.

Pepe negaceou-os, descendo a vista até os próprios pés. “Chegou a hora. Aqui tem início a condenação”.

- Eu sou Pepe - disse, réu confesso, num sorriso débil. Estivesse decidido, teria levantado os braços, rendido.

- Documentos, por favor - repetiu o mais alto, num longínquo toque de civilidade.

- Ah ... - e os muitos dedos de sua mão direita passaram a buscar no bolso uma ou outra, uma e outra carteiras. - Ah, claro - e os muitos dedos de uma estranha mão, que na aparência era a sua, conseguiram trazer umas carteiras. - Aqui estão.

- Para onde você pretende ir? - perguntou o baixinho, sem olhar os documentos.

- Eu? - E teve um assomo de sinceridade: - Ainda não sei. Tou vendo.

O indivíduo mais alto examinou detidamente a cara de Pepe, os documentos, e decretou com ar de especialista:

- A sua identidade precisa de um retrato mais recente. Assim, sem barba...

- É que eu sou estudante, me viro ...

Deram-lhe as costas. Pepe resolveu então pegar o primeiro ônibus que o conduzisse a qualquer lugar.



Naquele verão Lígia veio a saber que Pepe fora encontrado em Caruaru, à deriva, na feira. Ela soube que ele fora encontrado por um amigo, o que é uma prova inconteste de que o mundo é pequeno. Desnorteado e sujo, atirara-se nos braços do companheiro, ela soube.

- Estou perdido, me ajude! - exclamou. E baixou a voz: - Eles vêm me pegar. Me arranje um esconderijo, rápido.

O amigo caruaruense abraçou-o. Antes, foi abraçado. E por notar o constrangimento, Pepe caiu em si:

- Mas... mas quem é você? Eu te conheço, mas não estou me lembrando.

Ligia soube, mais um pouco. Depois do encontro na feira, o amigo descera com ele de volta ao Recife. Pepe viera transformado, “incógnito”, quer dizer, no que ele achara ser a aparência de um jovem que não despertasse suspeita: de óculos escuros, boina e casacão preto. Desses casacos com uma bandeirinha de Tio Sam no ombro. E apesar das transformações, pálido, com a voz gutural, assim ele descera na rodoviária. Como se falasse a um motorista de táxi, indicou ao amigo o endereço da casa de um primo. Dirigiram-se para lá, foram, Lígia soube.

Seu primeiro sentimento foi o de um reprimido vexame, por seu namorado ter um comportamento assim, tão anti-heróico. E o heróico, para ela, era um comportamento, do qual não tinha coragem de zombar em público. A insinuação de um feito admirável, que convida a ser seguido, ela desdenhava, pelo desconforto, pois que era importuno. Mas desdenhar não é de fato desprezar. Teria sido bom que ele, frente à adversidade, ousasse pelo menos um comportamento mais equilibrado, mais sereno, vá lá, qualquer coisa vizinha ao estóico, que se aproximasse do olhar nos olhos o perigo. Já não diria vencê-lo, ao medo. Mas se furtar, ou melhor, bater com os próprios pés na bunda numa desorientada e apavorada fuga, isso não estava nos limites do seu desdém. Que ele enfrentasse e caísse, que abrisse nomes debaixo da tortura, isso era aceitável. O seu comportamento não seria exemplar, mas ganharia a aura do cumprimento de uma fria sentença do destino. Que ele morresse, cagado, em incontrolável tremedeira nos joelhos, isso era até possível. Limpada a merda, enrijecidas e esticadas as pernas, ela teria um namorado, um cadáver apresentável. Mas aquilo, o que ela soube, vinha em excesso: Pepe, o namorado, estava vivo, desequilibrado, louco, de medo.

A sua vergonha, tentemos uma olhada, tinha zonas escuras de astúcia e hipocrisia. A mais evidente, porque mais fácil se apresenta, é a hipócrita. Ao saber da nova situação de Pepe, Lígia passou a mencioná-lo como o “ex”. Ele era o seu “ex-namorado”. A hipocrisia se deu na passagem do namorado para o ex, da boca para fora. O ex não surgiu da mudança de sentimento. A princípio ela quis desconhecer, com mostras de alheamento, as notícias da loucura de Pepe. Quando tais notícias se tornaram irrecusáveis, ela teve um movimento para justificá-lo: aquilo era um desvio do pêndulo mental, algo intrínseco à pessoa dele, ancestral, anterior aos assassinatos dos companheiros. Mas faltavam-lhe, para essa justificação, informações consistentes e, mais sério, o conhecimento de uma teoria que as acomodasse, ainda que fosse uma teoria mentirosa. Ela interrogava, como uma resposta, às notícias: “Será? É mesmo? Como é possível?”. E depois, mais adiante, considerava, “deve estar havendo algum truncamento. Deve ser um equívoco. Ele é meio assim...”. E mais adiante: “eu acho que isso é porque ...”. Nesse ponto lhe faltava um encadeamento, satisfatório, que evitasse a gênese imediata, e esta era, num desenrolar de pedras para o abismo: Pepe enlouquecia de medo. Então ela se conformou à satisfação pública, escudando-o, como se esconde um parente defeituoso da zombaria pública. Passou a referi-lo como o “ex”. Para isso foi de uma extraordinária firmeza e coerência: nem uma só vez o visitou. E uma nuvem passava, dizendo-lhe na sua voz de Lígia: - “ Visitá-lo para quê? Não há mesmo mais jeito. Melhor a lembrança”.

A astúcia de sua vergonha foi a recusa de o ver, ainda que na lembrança, com serena e demorada atenção. Pois o tempo de reflexão num só ponto já por sua demora dá os seus frutos. Ela se lembrava dele num átimo, e no tempo de um raio esquecia-o, entre aspas. Essas aspas delimitavam uma ilha, onde Pepe se deitava, barbudo, o corpo amarelo, banhado de sol. Estranha ilha sem mar, que espelhava das ondas só a cor, guarnecida por folhas de palmeiras sem tronco. O concreto era Pepe, deitado na areia, à espera de um seu olhar. Se ela o encarasse, do rosto em pêlos ouviria: “ a causa de minha loucura também se acha em tua natureza”. Mas eu não sou louca, ela responderia, ainda que soubesse que não era disso que Pepe falava. E mais uma vez a astúcia evitava-o. Porque o medo, o pavor que se apossava de Pepe, em Lígia também fazia o seu caminho. E lá num ponto distante, como se fosse uma origem, ela o sabia: ambos gostavam de ironizar, de brincar com a coragem de quem fincava os pés na resistência à tortura até um limite sem volta. Essa coragem era burra, eles se diziam, e com isso estabeleciam a mistura de confundir num só corpo coragem, teimosia e burrice. Essa coragem burra, burrice, portanto, era motivo de piada. Mas a brincadeira acabou, pois a morte chegara, e como era real! No final, a piada não gerava uma gargalhada.


*Do romance “Os corações futuristas”


** Escritor e jornalista, autor dos livros “Soledad no Recife” e “Os corações futuristas”, entre outros.

3 comentários:

  1. Eram apenas meninos idealistas que quase nada sabiam, mal saídos dos coeiros.
    Destaco: " num só corpo coragem, teimosia e burrice".
    Hoje temos uma dessas pessoas no ápice do poder. Então, é mentira o que me disseram a vida toda, de que "os corajosos enchiam o cemitério". Alguns escapam para a glória.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Por exemplo: Os Fernando escaparam mentindo descaradamente, "O que é isso, companheiro?", e o outro: "Esqueçam o que escrevi!"

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