Antes que tudo se perca
* Por Pedro J. Bondaczuk
Os pequenos aborrecimentos do dia a dia têm maior relevância para determinadas pessoas (diria, até, que se trata da maioria) do que as grandes conquistas que obtêm, sem que sequer se dêem conta. Ou seja, somos rapidíssimos no gatilho quando se trata de se queixar, e lentos, morosos, a passo de tartaruga (quando não inermes) quando é o caso de se agradecer.
O homem é um eterno insatisfeito. E é bom que seja assim, desde que, claro, não se descambe para o exagero. Até virtude em excesso (caso isso fosse possível) transforma-se em defeito. A moderação é a atitude mais sadia, em toda e qualquer circunstância, é óbvio. Principalmente no que se refere às nossas insatisfações.
Carlinhos Ganso é o tipo de pessoa que não se satisfaz com coisíssima alguma. Nunca o vi sorrir com espontaneidade e seu pessimismo, aqui na redação, onde é nosso colega há já dois anos, se tornou motivo de chacota de todo o pessoal.
Qualquer um que cruze, pela manhã, com ele, nos corredores da empresa, e lhe dirija um casual cumprimento, sabe, de antemão, qual será sua resposta. Hoje, resolvi fazer um teste. Não que tivesse dúvidas do resultado, mas para mostrar ao Otacílio, que está há apenas uma semana entre nós, como estagiário, que a turma não exagera quando comenta sobre a crônica insatisfação, sobre o inarredável mau-humor do nosso Zangado, apelido que, claro, lhe cai como uma luva.
- Bom dia, Carlinhos. Como vai? – cumprimento-o efusivamente, exagerando um pouco no meu entusiasmo, com a mão estendida e um largo sorriso nos lábios.
- Mais ou menos – responde o colega, como que num murmúrio, entre entediado e irritado.
Otacílio não contém uma gargalhada, me olhando, de soslaio e dando maliciosa piscadela. Ocorre que Carlinhos reagiu ao meu cumprimento exatamente como eu havia dito que reagiria, sem tirar e nem pôr.
- Algum problema? – voltei à carga, antevendo a resposta, que já havia antecipado ao colega estagiário qual seria. Ou seja, uma sucessão de lamúrias, de queixas e de reclamações, contra tudo e contra todos. E estas, como havia previsto, não se fizeram esperar:
- Um monte deles! – respondeu Carlinhos, desfiando, a seguir, um rosário de motivos para estar de cara fechada, com raiva da vida, do mundo e de todos os que o habitavam. Falou, falou e falou, sem se importar com a nossa reação. Queixou-se, por exemplo, que havia torcido o pé na academia, onde mantinha a forma física. Lamentou o arranhão no carro zero quilômetro, que ganhou do pai há um mês, num estacionamento da cidade. Deplorou o fato de não ter tirado dez na prova de Direito Civil na faculdade. E, por fim, esbravejou pelo fato de ter sido preterido na promoção na empresa, em favor de um colega muito esforçado, paupérrimo, o chamado “pau para toda a obra”, queridíssimo pelos companheiros.
Claro que seus aborrecimentos, embora pequenos, eram reais, não inventados por sua mente de “infeliz de carteirinha”. Mas analisemos suas queixas e vejamos quantos motivos de regozijo o Carlinhos tem, que anulam ou minimizam ao máximo seus aborrecimentos e que ele parece não se dar conta.
É verdade que uma torção no pé é dolorida. Mas, convenhamos, não é nenhuma tragédia. E a dele foi levíssima, dessas que se curam em três ou quatro dias. Ademais, quantas pessoas, neste país, de tamanhos desníveis sociais e de tanta miséria, têm condições de freqüentar uma academia, e das mais caras da cidade?
Quanto ao carro... É chato sofrer prejuízos, quaisquer que sejam. Mas o arranhão no automóvel do Carlinhos era tão pequeno, que seria preciso encostar o nariz na lataria do veículo para que pudesse ser notado. E quantas são as pessoas que têm condições de ganhar carros zero quilômetro, no valor em torno de R$ 75 mil, dos pais?
Em relação à sua nota na faculdade, não se tratou de nada que não pudesse ser corrigido, com um tantinho que fosse de estudo. E nem é preciso ressaltar que, também nesse aspecto, o garotão sarado é um privilegiado. Afinal, estuda em uma escola superior particular, caríssima, e das de maior prestígio no País.
Finalmente, no que se refere à promoção... Que tal se ele fosse menos esnobe, mais simpático e sociável, mais prestativo, menos egoísta e, sobretudo, mais empenhado no trabalho? Além do que, esse emprego, para ele, é mero bico, nada além disso. Está, na verdade, é ocupando vaga de milhões de outros brasileiros, desempregados há tempos, com famílias para sustentar – mais necessitados, portanto, do que ele – e até melhor preparados.
John Steinbeck, no romance “O Inverno dos Descontentes”, constatou: “Quando uma situação ou um problema se complica muito, o homem se protege não pensando nele. Mas o perigo penetra na alma e se mistura com outros receios que lá já se encontram e o que surge é o descontentamento e perplexidade, culpa e um impulso para obter alguma coisa – qualquer coisa – antes que tudo esteja perdido”.
Carlinhos, contudo, como tantos outros privilegiados que são felizes sem que o saibam, não se protege não pensando nos problemas. Age exatamente ao contrário. Pensa a todo o momento nos seus ínfimos aborrecimentos e quanto mais age assim, mais atrai novos probleminhas.
Lamenta, e lamenta e lamenta e quer obter (sem se esforçar para isso), não qualquer coisa, mas tudo o que de bom a vida possa oferecer, sem se importar quantas pessoas (e quais) vai passar para trás. E se esquece, com essa atitude neurótica e egoísta, de usufruir o muito que já tem, “antes que tudo se perca”.
*Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
* Por Pedro J. Bondaczuk
Os pequenos aborrecimentos do dia a dia têm maior relevância para determinadas pessoas (diria, até, que se trata da maioria) do que as grandes conquistas que obtêm, sem que sequer se dêem conta. Ou seja, somos rapidíssimos no gatilho quando se trata de se queixar, e lentos, morosos, a passo de tartaruga (quando não inermes) quando é o caso de se agradecer.
O homem é um eterno insatisfeito. E é bom que seja assim, desde que, claro, não se descambe para o exagero. Até virtude em excesso (caso isso fosse possível) transforma-se em defeito. A moderação é a atitude mais sadia, em toda e qualquer circunstância, é óbvio. Principalmente no que se refere às nossas insatisfações.
Carlinhos Ganso é o tipo de pessoa que não se satisfaz com coisíssima alguma. Nunca o vi sorrir com espontaneidade e seu pessimismo, aqui na redação, onde é nosso colega há já dois anos, se tornou motivo de chacota de todo o pessoal.
Qualquer um que cruze, pela manhã, com ele, nos corredores da empresa, e lhe dirija um casual cumprimento, sabe, de antemão, qual será sua resposta. Hoje, resolvi fazer um teste. Não que tivesse dúvidas do resultado, mas para mostrar ao Otacílio, que está há apenas uma semana entre nós, como estagiário, que a turma não exagera quando comenta sobre a crônica insatisfação, sobre o inarredável mau-humor do nosso Zangado, apelido que, claro, lhe cai como uma luva.
- Bom dia, Carlinhos. Como vai? – cumprimento-o efusivamente, exagerando um pouco no meu entusiasmo, com a mão estendida e um largo sorriso nos lábios.
- Mais ou menos – responde o colega, como que num murmúrio, entre entediado e irritado.
Otacílio não contém uma gargalhada, me olhando, de soslaio e dando maliciosa piscadela. Ocorre que Carlinhos reagiu ao meu cumprimento exatamente como eu havia dito que reagiria, sem tirar e nem pôr.
- Algum problema? – voltei à carga, antevendo a resposta, que já havia antecipado ao colega estagiário qual seria. Ou seja, uma sucessão de lamúrias, de queixas e de reclamações, contra tudo e contra todos. E estas, como havia previsto, não se fizeram esperar:
- Um monte deles! – respondeu Carlinhos, desfiando, a seguir, um rosário de motivos para estar de cara fechada, com raiva da vida, do mundo e de todos os que o habitavam. Falou, falou e falou, sem se importar com a nossa reação. Queixou-se, por exemplo, que havia torcido o pé na academia, onde mantinha a forma física. Lamentou o arranhão no carro zero quilômetro, que ganhou do pai há um mês, num estacionamento da cidade. Deplorou o fato de não ter tirado dez na prova de Direito Civil na faculdade. E, por fim, esbravejou pelo fato de ter sido preterido na promoção na empresa, em favor de um colega muito esforçado, paupérrimo, o chamado “pau para toda a obra”, queridíssimo pelos companheiros.
Claro que seus aborrecimentos, embora pequenos, eram reais, não inventados por sua mente de “infeliz de carteirinha”. Mas analisemos suas queixas e vejamos quantos motivos de regozijo o Carlinhos tem, que anulam ou minimizam ao máximo seus aborrecimentos e que ele parece não se dar conta.
É verdade que uma torção no pé é dolorida. Mas, convenhamos, não é nenhuma tragédia. E a dele foi levíssima, dessas que se curam em três ou quatro dias. Ademais, quantas pessoas, neste país, de tamanhos desníveis sociais e de tanta miséria, têm condições de freqüentar uma academia, e das mais caras da cidade?
Quanto ao carro... É chato sofrer prejuízos, quaisquer que sejam. Mas o arranhão no automóvel do Carlinhos era tão pequeno, que seria preciso encostar o nariz na lataria do veículo para que pudesse ser notado. E quantas são as pessoas que têm condições de ganhar carros zero quilômetro, no valor em torno de R$ 75 mil, dos pais?
Em relação à sua nota na faculdade, não se tratou de nada que não pudesse ser corrigido, com um tantinho que fosse de estudo. E nem é preciso ressaltar que, também nesse aspecto, o garotão sarado é um privilegiado. Afinal, estuda em uma escola superior particular, caríssima, e das de maior prestígio no País.
Finalmente, no que se refere à promoção... Que tal se ele fosse menos esnobe, mais simpático e sociável, mais prestativo, menos egoísta e, sobretudo, mais empenhado no trabalho? Além do que, esse emprego, para ele, é mero bico, nada além disso. Está, na verdade, é ocupando vaga de milhões de outros brasileiros, desempregados há tempos, com famílias para sustentar – mais necessitados, portanto, do que ele – e até melhor preparados.
John Steinbeck, no romance “O Inverno dos Descontentes”, constatou: “Quando uma situação ou um problema se complica muito, o homem se protege não pensando nele. Mas o perigo penetra na alma e se mistura com outros receios que lá já se encontram e o que surge é o descontentamento e perplexidade, culpa e um impulso para obter alguma coisa – qualquer coisa – antes que tudo esteja perdido”.
Carlinhos, contudo, como tantos outros privilegiados que são felizes sem que o saibam, não se protege não pensando nos problemas. Age exatamente ao contrário. Pensa a todo o momento nos seus ínfimos aborrecimentos e quanto mais age assim, mais atrai novos probleminhas.
Lamenta, e lamenta e lamenta e quer obter (sem se esforçar para isso), não qualquer coisa, mas tudo o que de bom a vida possa oferecer, sem se importar quantas pessoas (e quais) vai passar para trás. E se esquece, com essa atitude neurótica e egoísta, de usufruir o muito que já tem, “antes que tudo se perca”.
*Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
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O que comprar:
Cronos e Narciso (crônicas, Editora Barauna, 110 páginas) – “Nessa época do eterno presente, em que tudo é reduzido à exaustão dos momentos, este livro de Pedro J. Bondaczuk reaviva a fome de transcendência! (Nei Duclós, escritor e jornalista). – Preço: R$ 23,90.
Lance fatal (contos, Editora Barauna, 73 páginas) – Um lance, uma única e solitária jogada, pode decidir uma partida e até um campeonato, uma Copa do Mundo. Assim como no jogo – seja de futebol ou de qualquer outro esporte – uma determinada ação, dependendo das circunstâncias, decide uma vida. Esta é a mensagem implícita nos quatro instigantes contos de Pedro J. Bondaczuk neste pequeno grande livro. – Preço: R$ 20,90.
Como comprar:
Pela internet – WWW.editorabarauna.com.br – Acessar o link “Como comprar” e seguir as instruções.
Em livraria – Em qualquer loja da rede de livrarias Cultura espalhadas pelo País.
Cronos e Narciso (crônicas, Editora Barauna, 110 páginas) – “Nessa época do eterno presente, em que tudo é reduzido à exaustão dos momentos, este livro de Pedro J. Bondaczuk reaviva a fome de transcendência! (Nei Duclós, escritor e jornalista). – Preço: R$ 23,90.
Lance fatal (contos, Editora Barauna, 73 páginas) – Um lance, uma única e solitária jogada, pode decidir uma partida e até um campeonato, uma Copa do Mundo. Assim como no jogo – seja de futebol ou de qualquer outro esporte – uma determinada ação, dependendo das circunstâncias, decide uma vida. Esta é a mensagem implícita nos quatro instigantes contos de Pedro J. Bondaczuk neste pequeno grande livro. – Preço: R$ 20,90.
Como comprar:
Pela internet – WWW.editorabarauna.com.br – Acessar o link “Como comprar” e seguir as instruções.
Em livraria – Em qualquer loja da rede de livrarias Cultura espalhadas pelo País.
Acho que é o tipo de pessoa que por mais que a miséria
ResponderExcluirdo outro seja maior, ele será incapaz de enxergar.
Beijos
Acabou me fazendo lembrar de uma pessoa, sem tirar nem por. Ela é sim alguém que se queixa sem grandes motivos, e se outro fala dos grandes problemas alheios, bem maiores, gera calorosa discussão.
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