Sem ação
* Por Marcelo Sguassábia
Ilustração: Thiago Cayres
Com o fim do viva-voz, os negócios na BM&F passam a ser integralmente realizados pelo chamado GTS (Global Trading System) – um sistema eletrônico que as corretoras acessam de seus escritórios e dispensa a negociação feita pelos operadores em pregão. – Último Segundo – IG
Lá se vão dois anos desde que o meu valor de mercado despencou a zero, da noite pro dia, igual ao crash de 29. Mas ainda acordo no meio da noite com a orelha encostada no ombro, como se estivesse falando em três telefones ao mesmo tempo. Os músculos tensos, as mãos afrouxando um nó de gravata imaginário, gritando para ninguém: “Eu compro!”, “Eu vendo!”, “Fechado!”. Esgoelo até ficar quase rouco e ser acordado pela patroa, essa coitada que só não me largou ainda por causa da igreja. E vai um tempo até que eu desabe do saguão da BM&F para essa desgraça dessa cama, que já nem se dão ao trabalho de arrumar mais porque não saio mesmo dela, com a síndrome do pânico empapando de suor frio esse meu pijama listrado.
Agora o telefone toca de verdade. Um outro ex-operador, dos áureos tempos da ciranda financeira, me convidando para uma pescaria. Eu digo que sim, mas pesca me lembra rio, que me lembra Vale do Rio Doce, que me lembra o que nem preciso mencionar pra não começar a suar frio de novo. Desligo, faço de conta que caiu a ligação.
Maldita internet, malditos Home Brokers. Agora qualquer Zé Arruela administra, deitado na cama como eu, a sua carteirinha de ações. Se acham muito espertos e quebram logo a cara, lógico, porque não têm o jogo de cintura e a astúcia do papai aqui. Sou do tempo da Bovespa pré-painel eletrônico. Tinha uma lousa enorme e o pessoal, com giz e apagador, ia atualizando as cotações na munheca. Se contar ninguém acredita. E a grana pingava direitinho, tão constante e farta que eu nunca me preocupei pensando que um dia a fonte pudesse secar. Torrava o que vinha na farra regada a Chivas. Ganhava na corretagem e reinvestia boa parte na própria bolsa, comprando na baixa e vendendo na alta. Às vezes jogava tudo no papel mais azarão, e nunca dei com os burros n’água.
Volto aos jornais do dia, esparramados no lençol. Laboratório farmacêutico procurando voluntários pra teste de remédio contra a síndrome do pânico. Interessa. Vou lá conferir, pagam bem e ficam monitorando as melhoras e os efeitos colaterais. Serão dez anos fazendo parte de um grupo de controle, e tenho que assinar uns papéis isentando o laboratório em caso de óbito ou danos irreversíveis a essa carcaça velha. Tudo bem, não tenho nada a perder. Mas, antes, vou dar uma de operador Home Broker desconfiado e checar na bolsa a saúde das ações da tal empresa. Vai que... nossa, nem pensar. Olha o suor frio de novo.
* Redator publicitário há quase 30 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”
* Por Marcelo Sguassábia
Ilustração: Thiago Cayres
Com o fim do viva-voz, os negócios na BM&F passam a ser integralmente realizados pelo chamado GTS (Global Trading System) – um sistema eletrônico que as corretoras acessam de seus escritórios e dispensa a negociação feita pelos operadores em pregão. – Último Segundo – IG
Lá se vão dois anos desde que o meu valor de mercado despencou a zero, da noite pro dia, igual ao crash de 29. Mas ainda acordo no meio da noite com a orelha encostada no ombro, como se estivesse falando em três telefones ao mesmo tempo. Os músculos tensos, as mãos afrouxando um nó de gravata imaginário, gritando para ninguém: “Eu compro!”, “Eu vendo!”, “Fechado!”. Esgoelo até ficar quase rouco e ser acordado pela patroa, essa coitada que só não me largou ainda por causa da igreja. E vai um tempo até que eu desabe do saguão da BM&F para essa desgraça dessa cama, que já nem se dão ao trabalho de arrumar mais porque não saio mesmo dela, com a síndrome do pânico empapando de suor frio esse meu pijama listrado.
Agora o telefone toca de verdade. Um outro ex-operador, dos áureos tempos da ciranda financeira, me convidando para uma pescaria. Eu digo que sim, mas pesca me lembra rio, que me lembra Vale do Rio Doce, que me lembra o que nem preciso mencionar pra não começar a suar frio de novo. Desligo, faço de conta que caiu a ligação.
Maldita internet, malditos Home Brokers. Agora qualquer Zé Arruela administra, deitado na cama como eu, a sua carteirinha de ações. Se acham muito espertos e quebram logo a cara, lógico, porque não têm o jogo de cintura e a astúcia do papai aqui. Sou do tempo da Bovespa pré-painel eletrônico. Tinha uma lousa enorme e o pessoal, com giz e apagador, ia atualizando as cotações na munheca. Se contar ninguém acredita. E a grana pingava direitinho, tão constante e farta que eu nunca me preocupei pensando que um dia a fonte pudesse secar. Torrava o que vinha na farra regada a Chivas. Ganhava na corretagem e reinvestia boa parte na própria bolsa, comprando na baixa e vendendo na alta. Às vezes jogava tudo no papel mais azarão, e nunca dei com os burros n’água.
Volto aos jornais do dia, esparramados no lençol. Laboratório farmacêutico procurando voluntários pra teste de remédio contra a síndrome do pânico. Interessa. Vou lá conferir, pagam bem e ficam monitorando as melhoras e os efeitos colaterais. Serão dez anos fazendo parte de um grupo de controle, e tenho que assinar uns papéis isentando o laboratório em caso de óbito ou danos irreversíveis a essa carcaça velha. Tudo bem, não tenho nada a perder. Mas, antes, vou dar uma de operador Home Broker desconfiado e checar na bolsa a saúde das ações da tal empresa. Vai que... nossa, nem pensar. Olha o suor frio de novo.
* Redator publicitário há quase 30 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”
Risos...como sempre. Quem já foi rei nunca perde a magestade, diz o manjado ditado, mas cai bem ao seu texto Marcelo.
ResponderExcluir