sábado, 22 de janeiro de 2011


Poética de Mauro Mota

* Por Luiz Carlos Monteiro


A aparição da poesia completa de Mauro Mota veio para suprir uma lacuna de mais de duas décadas na literatura brasileira. O poeta não se dispôs ele mesmo a reunir, enquanto vivo, os livros publicados e o material inédito que guardava. Talvez pela gama de atividades que exercia no cotidiano, como a escrita sistemática de prosa para livro e jornal. Os seus livros de poesia foram sendo editados num intervalo de tempo médio de dois-quatro anos, o que se mostra razoável e não revela descuido ou saturação. E nesta Obra poética – lançada no Recife em 2004 com o selo da Ensol, em convênio com a ABL – o leitor atento não perceberá mudanças substanciais numa poética que já tinha se consolidado desde As elegias em 1952, mesmo com o acréscimo do que se convencionou chamar, no volume, “versos de arquivo”.

Mauro Mota (1911-1984) costuma ser enquadrado na geração de 45, embora parte significativa de seus versos demonstre o contrário, pois na sua trajetória não há fixação numa forma poética ou fase literária específica. Tanto podia representar o poeta passadista do Recife – como também o foram em certa medida Manuel Bandeira e Joaquim Cardozo – quanto o neomodernista comedido, convivendo sem grandes problemas com a irreverência de um Ascenso Ferreira. Além do mais, numa empatia ao “novo” ou ao supostamente “novo” em poesia, podia se render ao charme do micropoema ou do poemínimo, da escrita coloquial e do texto minimalista. Pelo seu lirismo irreprimível, não mantinha maiores aproximações com João Cabral, ainda que trabalhasse seus poemas levando em conta a aprendizagem e a prática de uma “alta e obstinada lição de rigor, de um rigor que se diria clássico, tamanho é o tributo que paga à austeridade expressiva e ao culto das boas tradições da língua”, como aponta Ivan Junqueira no prefácio à Obra poética.

Os poemas neomodernistas da primeira fase chegam impregnados do Regionalismo em voga no Recife, sobretudo nos anos 20/30 do século passado, sob a liderança de Gilberto Freyre. Nestes poemas, publicados em jornais interioranos, identifica-se um certo sabor provinciano, permeado de intenções e tonalidades agudamente localistas, com uma certa inclinação epigramática, aproximando Mauro Mota do poeta modernista Ronald de Carvalho. Tais poemas se caracterizam ainda pelo humor raro e explícito, algumas vezes ingênuo e piegas. Desta safra são os poemas de Jornal do município, do livro Itinerário, onde um poema condensado e sintético, “Jogo noturno”, se destaca:

Ilumina-se o campo
para o futebol na aldeia.
Aparece a bola branca,
feita de algodão e meia.
Meninos poetas jogam
com a bola da lua cheia.

A poesia que fala diretamente do Recife reflete a condição de pessoas, coisas, paisagens bucólicas e “imagens da água” dentro do urbano, onde se aflora também a imagem reversa de um Recife sombrio e melancólico, senão aburguesado pelas velhas e tradicionalistas famílias que aqui residiam em satisfeitos sobrados contrapostos a rotos e esfomeados mocambos. Ou a visão de um outro Recife cingido pelos saraus literários do Café Lafayette e movimentado pelo footing da rua Nova. O passadismo neste poeta significa um momento de extrema coerência entre sua vida e obra: há uma conexão simbiótica que incrementa, na obra, os elementos vivenciais que perfazem o poeta antigo e com o olhar voltado nostalgicamente para um mundo derrocado, morto e em franca desaparição de seus valores.
No poema-inventário, Guia prático da cidade do Recife, Carlos Pena Filho vai introduzindo os poetas de sua preferência, notadamente os que melhor cantaram o Recife: Manuel Bandeira, João Cabral e Joaquim Cardozo. No fragmento “A lua”, é marcante o traço humorístico, numa referência direta à fama de “comilão” de Ascenso Ferreira; em “Os subúrbios”, o referente é as “tecelãs”, tema caro a Mauro Mota. Aliás, Mauro não foge à poesia social – no seu caso, de vertente humanística – que se manifesta, por exemplo, em dois poemas de O Galo e o catavento (1962), “Cantiga de lavadeira” e “A rendeira”, e no poema “A tecelã”, editado pelo Gráfico Amador em 1956, e posteriormente incluído em Os epitáfios (1959). Em versos de “A tecelã”, a motivação central é a mulher trabalhadora que fabrica, com seu sangue e pele tecidos, estampas e roupas para consumo de outras pessoas, com exclusão dela própria:
Muito embora nada tenhas,
estás tecendo o que é teu.

Teces tecendo a ti mesma
na imensa maquinaria,
como se entrasses inteira
na boca do tear e desses
a cor do rosto e dos olhos
e o teu sangue à estamparia.

A partir de Canto ao meio (1964), os poemas de Mauro Mota vão sendo publicados como pequenas reuniões ou breves antologias. Uma das últimas publicações conhecidas, a Antologia em verso e prosa(1982). Quando ele se afasta dos sonetos de linhagem petrarquiana, passa a desenvolver o verso branco e o poema livre, instaurando quebras diversas – no ritmo e nas rimas, na métrica e nos efeitos sonoros de maior ressonância e aplicabilidade, como aliterações e assonâncias. Ao abandonar recursos expressionais de valia comprovada, para aventurar-se no mundo de quem reivindica, acima de tudo, o surto novidadeiro, o engajamento vanguardista e a maldição iconoclasta, Mauro Mota às vezes paga o preço por forçar a mão e a circunstância. E pode vir a ser penalizado também por associar sua performance poética individual, indesejadamente talvez, ao poema que não logrou se realizar artisticamente, ou seja, ao poema que foi concebido e construído como poesia, mas que guarda todas as características da prosa.

(Continente Multicultural, ano IV, nº 47, nov. 2004; aqui, com pequenas alterações.)

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com

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