Velha leoa
* Por Laís de Castro
Foi quando joguei meus óculos de pesada miopia pela janela do ônibus. Dali para a frente, não precisaria ver mais nada. Aquela música, o batuque, todos aqueles instrumentos de lata e couro até agora cadenciam as batidas do meu coração num benéfico ritmo que me embala e anima. Comemora-se a liberdade do opressor e o nascimento de um novo país. Dia 12 de setembro de 1948, República dos Diamantes: no extremo norte da malfadada América do Sul, o sonho invade o ar como a fumaça das cigarrilhas, esse é nosso país e vai dar certo, que de ilusão também se vive e ninguém corta ilusão com faca. A Amazônia brasileira abaixo, o oceano acima, uma colônia francesa a oeste, a possessão holandesa explorada a pleno vapor a leste. O que farão eles com seu pequeno país, espremido entre tantas forças, ensanduichado entre duas colônias paupérrimas, o mar imenso e uma floresta. Importa, mas não importa e seria curioso, se não fosse trágico.
Esses caribenhos são duros na queda, têm personalidade, mas não dinheiro. São honestos, mas há focos de corrupção, feito pontos de catapora que, de repente, podem se unir sobre toda a superfície da pele e da terra daquele país ainda limpo, se eu acreditasse em deuses faria promessas pela salvação terrena daquela gente de bom senso e ótima vontade. No entanto e apesar disso, as máquinas das quatro indústrias que não se retiraram com a independência estão velhas e sem lubrificação, feito a alma deles que chega até aqui sucateada de tantas lutas, o coração coberto da poeira das estradas que levaram à libertação, o estômago vazio como as lojas, os pés sangrando e feridos como as mentes, tantas são as humilhações desde que se tornaram colônia de um país forte e cruel.
Nessa jardineira em que me meti depois dos dois dias de festas, todos falam espanhol, não dou um pio, para não ser identificada como uma estranha.
Enfiar a cabeça como avestruz num espaço que a luta não destruiu, que o sangue não manchou, entre os sonhos virgens daqueles ribeirinhos que o arrastão do horror das últimas lutas e o fugaz êxtase da vitória não embriagaram, carregando na mala a certeza de que óculos e tortura nunca mais, porque o que de pior e de melhor poderia ter visto, já vi.
A menina mais velha varre o terreiro de terra batida, lisa e dura como uma bola de bilhar, na faixa estreita que se fez morada, entre o caudaloso rio Cournatyne e a floresta tropical úmida. A casa de toras, o fogão de barro, as cadeiras toscas e uma rede. Uma só, mas logo haverá outra, porque as cordas vêm sendo cuidadosamente trançadas pelas mãos do irmão, artesão nato, perfeito, detalhista e cuidadoso. Ninguém lhe ensinou nada. Um dia, muitos anos depois deste, alguém lhe dará papel e tesoura e o menino se tornará um fenômeno, mas este dia está longe, por enquanto ele tece redes e canta a música dos bichos.
Tudo começou quando o pai e um irmão se puseram a caminho, na barcaça, e apearam onde o peixe era farto, bem longe de tudo e de todos, para uma pescaria e nada mais. Sem esperança, foram ficando e tocaram a vida como se toca a canoa, primeiro uma choupana, depois uma casa de madeira, frutos da floresta, sustos e medos dos bichos bravios que apareciam repentinamente, mas aqui sem mulher não dá para viver e se a gente for buscar duas na cidade. Duas mulheres, duas casas, dois anos e dois filhos depois a mulher do irmão encasquetou que ali naquela pobreza de comer peixe e fruta não vivia mais e foram embora na barcaça em que vieram. Na mesma barcaça que deixava ali, em regime de escambo, pleno século XX, o açúcar, o sal, um pequeno espelho e um sabonete uma vez, fósforos, melhoral e panos velhos de cama, mesa e banho, roupas próximas de trapos, contudo ainda de serventia. O tempo foi passando e entre os filhos nascedores e morredores restaram seis, os outros quatro estão enterrados atrás do mulungu, “mi padre no tenia ni pico para trabajar la tierra, tubo que usar un palo para hacer los agujeros”.
As crianças não têm nome nem fome, não têm documentos nem lamentos, não têm televisão mas o rio, a floresta e o pôr-do-sol se encarregam dos mais lindos espetáculos diários para seus olhos ávidos de novidades. Não tomam vacinas, mas não pegam piolhos dos colegas de escola, quem nunca pegou que levante a mão agora ou cale-se para sempre. Os dias não são numerados e nem batizados com nomes arbitrários, ninguém sabe se é domingo ou segunda-feira, o passar do tempo só se revela quando o calor vira o frio, a chuva vira sol, a lua cheia clareia as noites desenhando o perfil das árvores sobre as águas do rio e a minguante escurece tudo, enchendo de fantasmas a densa selva ali do lado. Ninguém vai ponderar o esvair de trinta janeiros ou de dezenas de natais, não há carnavais nem dias de finados, muito menos eleições ou revoluções, políticos infestados de poder, glória ou afundando como machado sem cabo em águas turvas.
Num dia qualquer, ao ver, da proa da barca, a menina varrendo o terreiro, um marinheiro desembarcou e pediu pra ficar. O pai vislumbrou ajuda naqueles braços fortes e um macho para cuidar da filha, ele andava cansado de pescar e caçar, os meninos demoravam a crescer. O homem da água doce veio com disposição dobrada, trouxe martelo e pregos, fez uma casa de madeira e vários filhos, eu gosto desse lugar, mas preciso comer galinha e ovos, trocou cem quilos de peixe por duas poedeiras com seu ex-capitão e foi daí que passou a existir um insólito galinheiro em plena selva, na distante década de 50, daquele século XX que ninguém verá mais.
Era assim quando eu cheguei imaginando que não haveria de existir nada mais a ver ou ouvir, nada mais a buscar além da paz daquelas margens, o rio azul descendo em vogas, como os sonhos. Pois havia. Acostumei à pouca roupa, a lavar a cabeça e os dentes com joá, você vai ver é melhor do que pasta de dente da cidade que um dia a barca deixou.
Criei defesas contra os borrachudos, os marimbondos-cavalo e outros monstros voadores e chupadores de sangue, que existem lá às toneladas e hoje nem vejo. Embalei os meninos menores com histórias de fadas e heróis que um dia eles iriam conhecer. E inventei que todos precisavam saber ler e escrever. Haja peixe pra trocar por lápis, cadernos e cartilhas. Haja peixe pra trocar por revistas, que um deles se tornou curioso. Haja peixe para a primeira viagem, que o outro quis ver a tal da cidade. Haja peixe para trocar por batom, pois a vaidade faz parte do inconsciente coletivo feminino.
As notícias políticas também chegavam, acérrimas. Eu me embrenhava pela mata, com medo do mundo real. Sentia a proteção da escuridão e dos bichos, seus olhos sobre mim, mas eles nunca atacam como os humanos, apenas se defendem, como a natureza.
A cidade estava chegando lá e eu tinha pavor, na fraqueza de meus já adiantados anos, não sabia mais quantos, a pele amassada feito um papel de seda velho, as pernas, antes torneadas e agora fornidas, os passos já trôpegos, o cabelo mais ralo e os olhos míopes sem os óculos que atirei longe. Primeiro veio a equipe de televisão. Por quatro longas horas me mantive entocada num buraco da floresta do entorno, que já conhecia palmo a palmo. Depois veio o jornal. E a revista. Trazendo balas, doces e brinquedos vagabundos, uma toalha de mesa. Davam de presente, para estragar os dentes dos meninos, o meu humor e excitar o consumo, nós que nada precisávamos, tínhamos esquecido o mundo e sido por ele esquecidos.
Queriam levar meu diário, de mais de vinte anos (imagino, pois também acostumei a não contar o tempo). Não deixei, fingindo de brava, escondendo assim minha fragilidade interior. Deixei tirar uma foto só, sentada no bote de tronco, meio de longe. Registraram em acetato e celulose meus olhos azuis e o cabelo esbranquiçado que guardava alguns sinais do antiqüíssimo louro dourado natural, que seduzia os tolos. Todavia nunca souberam que eu tinha um passaporte vencido do império britânico, era parte do colonizador que submetera o povo local a privações, por mais de um século. E expiava ali a culpa de ter servido a essa maldita causa por três décadas. Meu nome não digo nem sob tortura, os meninos me chamam de clara.
Eu me tornei uma velha e sábia leoa da selva. Atacar não ataco, mas sei me defender.
(Conto do livro “Um velho almirante e outros contos”)
* Jornalista, 36 anos, está há 18 no grupo Abril (3 prêmios Abril). Trabalhou, ainda, 8 na Editora Três (sob Luís Carta), 11 na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e, agora, é da Dieta Já. É autora do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano.
* Por Laís de Castro
Foi quando joguei meus óculos de pesada miopia pela janela do ônibus. Dali para a frente, não precisaria ver mais nada. Aquela música, o batuque, todos aqueles instrumentos de lata e couro até agora cadenciam as batidas do meu coração num benéfico ritmo que me embala e anima. Comemora-se a liberdade do opressor e o nascimento de um novo país. Dia 12 de setembro de 1948, República dos Diamantes: no extremo norte da malfadada América do Sul, o sonho invade o ar como a fumaça das cigarrilhas, esse é nosso país e vai dar certo, que de ilusão também se vive e ninguém corta ilusão com faca. A Amazônia brasileira abaixo, o oceano acima, uma colônia francesa a oeste, a possessão holandesa explorada a pleno vapor a leste. O que farão eles com seu pequeno país, espremido entre tantas forças, ensanduichado entre duas colônias paupérrimas, o mar imenso e uma floresta. Importa, mas não importa e seria curioso, se não fosse trágico.
Esses caribenhos são duros na queda, têm personalidade, mas não dinheiro. São honestos, mas há focos de corrupção, feito pontos de catapora que, de repente, podem se unir sobre toda a superfície da pele e da terra daquele país ainda limpo, se eu acreditasse em deuses faria promessas pela salvação terrena daquela gente de bom senso e ótima vontade. No entanto e apesar disso, as máquinas das quatro indústrias que não se retiraram com a independência estão velhas e sem lubrificação, feito a alma deles que chega até aqui sucateada de tantas lutas, o coração coberto da poeira das estradas que levaram à libertação, o estômago vazio como as lojas, os pés sangrando e feridos como as mentes, tantas são as humilhações desde que se tornaram colônia de um país forte e cruel.
Nessa jardineira em que me meti depois dos dois dias de festas, todos falam espanhol, não dou um pio, para não ser identificada como uma estranha.
Enfiar a cabeça como avestruz num espaço que a luta não destruiu, que o sangue não manchou, entre os sonhos virgens daqueles ribeirinhos que o arrastão do horror das últimas lutas e o fugaz êxtase da vitória não embriagaram, carregando na mala a certeza de que óculos e tortura nunca mais, porque o que de pior e de melhor poderia ter visto, já vi.
A menina mais velha varre o terreiro de terra batida, lisa e dura como uma bola de bilhar, na faixa estreita que se fez morada, entre o caudaloso rio Cournatyne e a floresta tropical úmida. A casa de toras, o fogão de barro, as cadeiras toscas e uma rede. Uma só, mas logo haverá outra, porque as cordas vêm sendo cuidadosamente trançadas pelas mãos do irmão, artesão nato, perfeito, detalhista e cuidadoso. Ninguém lhe ensinou nada. Um dia, muitos anos depois deste, alguém lhe dará papel e tesoura e o menino se tornará um fenômeno, mas este dia está longe, por enquanto ele tece redes e canta a música dos bichos.
Tudo começou quando o pai e um irmão se puseram a caminho, na barcaça, e apearam onde o peixe era farto, bem longe de tudo e de todos, para uma pescaria e nada mais. Sem esperança, foram ficando e tocaram a vida como se toca a canoa, primeiro uma choupana, depois uma casa de madeira, frutos da floresta, sustos e medos dos bichos bravios que apareciam repentinamente, mas aqui sem mulher não dá para viver e se a gente for buscar duas na cidade. Duas mulheres, duas casas, dois anos e dois filhos depois a mulher do irmão encasquetou que ali naquela pobreza de comer peixe e fruta não vivia mais e foram embora na barcaça em que vieram. Na mesma barcaça que deixava ali, em regime de escambo, pleno século XX, o açúcar, o sal, um pequeno espelho e um sabonete uma vez, fósforos, melhoral e panos velhos de cama, mesa e banho, roupas próximas de trapos, contudo ainda de serventia. O tempo foi passando e entre os filhos nascedores e morredores restaram seis, os outros quatro estão enterrados atrás do mulungu, “mi padre no tenia ni pico para trabajar la tierra, tubo que usar un palo para hacer los agujeros”.
As crianças não têm nome nem fome, não têm documentos nem lamentos, não têm televisão mas o rio, a floresta e o pôr-do-sol se encarregam dos mais lindos espetáculos diários para seus olhos ávidos de novidades. Não tomam vacinas, mas não pegam piolhos dos colegas de escola, quem nunca pegou que levante a mão agora ou cale-se para sempre. Os dias não são numerados e nem batizados com nomes arbitrários, ninguém sabe se é domingo ou segunda-feira, o passar do tempo só se revela quando o calor vira o frio, a chuva vira sol, a lua cheia clareia as noites desenhando o perfil das árvores sobre as águas do rio e a minguante escurece tudo, enchendo de fantasmas a densa selva ali do lado. Ninguém vai ponderar o esvair de trinta janeiros ou de dezenas de natais, não há carnavais nem dias de finados, muito menos eleições ou revoluções, políticos infestados de poder, glória ou afundando como machado sem cabo em águas turvas.
Num dia qualquer, ao ver, da proa da barca, a menina varrendo o terreiro, um marinheiro desembarcou e pediu pra ficar. O pai vislumbrou ajuda naqueles braços fortes e um macho para cuidar da filha, ele andava cansado de pescar e caçar, os meninos demoravam a crescer. O homem da água doce veio com disposição dobrada, trouxe martelo e pregos, fez uma casa de madeira e vários filhos, eu gosto desse lugar, mas preciso comer galinha e ovos, trocou cem quilos de peixe por duas poedeiras com seu ex-capitão e foi daí que passou a existir um insólito galinheiro em plena selva, na distante década de 50, daquele século XX que ninguém verá mais.
Era assim quando eu cheguei imaginando que não haveria de existir nada mais a ver ou ouvir, nada mais a buscar além da paz daquelas margens, o rio azul descendo em vogas, como os sonhos. Pois havia. Acostumei à pouca roupa, a lavar a cabeça e os dentes com joá, você vai ver é melhor do que pasta de dente da cidade que um dia a barca deixou.
Criei defesas contra os borrachudos, os marimbondos-cavalo e outros monstros voadores e chupadores de sangue, que existem lá às toneladas e hoje nem vejo. Embalei os meninos menores com histórias de fadas e heróis que um dia eles iriam conhecer. E inventei que todos precisavam saber ler e escrever. Haja peixe pra trocar por lápis, cadernos e cartilhas. Haja peixe pra trocar por revistas, que um deles se tornou curioso. Haja peixe para a primeira viagem, que o outro quis ver a tal da cidade. Haja peixe para trocar por batom, pois a vaidade faz parte do inconsciente coletivo feminino.
As notícias políticas também chegavam, acérrimas. Eu me embrenhava pela mata, com medo do mundo real. Sentia a proteção da escuridão e dos bichos, seus olhos sobre mim, mas eles nunca atacam como os humanos, apenas se defendem, como a natureza.
A cidade estava chegando lá e eu tinha pavor, na fraqueza de meus já adiantados anos, não sabia mais quantos, a pele amassada feito um papel de seda velho, as pernas, antes torneadas e agora fornidas, os passos já trôpegos, o cabelo mais ralo e os olhos míopes sem os óculos que atirei longe. Primeiro veio a equipe de televisão. Por quatro longas horas me mantive entocada num buraco da floresta do entorno, que já conhecia palmo a palmo. Depois veio o jornal. E a revista. Trazendo balas, doces e brinquedos vagabundos, uma toalha de mesa. Davam de presente, para estragar os dentes dos meninos, o meu humor e excitar o consumo, nós que nada precisávamos, tínhamos esquecido o mundo e sido por ele esquecidos.
Queriam levar meu diário, de mais de vinte anos (imagino, pois também acostumei a não contar o tempo). Não deixei, fingindo de brava, escondendo assim minha fragilidade interior. Deixei tirar uma foto só, sentada no bote de tronco, meio de longe. Registraram em acetato e celulose meus olhos azuis e o cabelo esbranquiçado que guardava alguns sinais do antiqüíssimo louro dourado natural, que seduzia os tolos. Todavia nunca souberam que eu tinha um passaporte vencido do império britânico, era parte do colonizador que submetera o povo local a privações, por mais de um século. E expiava ali a culpa de ter servido a essa maldita causa por três décadas. Meu nome não digo nem sob tortura, os meninos me chamam de clara.
Eu me tornei uma velha e sábia leoa da selva. Atacar não ataco, mas sei me defender.
(Conto do livro “Um velho almirante e outros contos”)
* Jornalista, 36 anos, está há 18 no grupo Abril (3 prêmios Abril). Trabalhou, ainda, 8 na Editora Três (sob Luís Carta), 11 na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e, agora, é da Dieta Já. É autora do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano.
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