Cartas a ninguém
* Por Eduardo Murta
O suspiro bafejado se convertia em formas densas, alongadas, gelificando ao ar daquela Paris. Lembrava soluços de abandonados. Na manhã fria da cidade, ele era um quase solitário ao banco da praça. Lia, pela terceira vez, o discurso de posse. Um rosário de promessas arrebatadoras. O fecho era o que mais lhe punha deslumbrado: “Construir uma nação sem fronteiras para o bem comum”. O que estava no papel ganhara morada definitiva nos compêndios da história. E só. Pouco ou nada fora transformado. Deserdados seguiram deserdados. Afortunados, mais afortunados. O texto não permitia reparos, porém. Se o reconstruísse, mudaria uma vírgula enviesada. Não mais.
O mal é que havia vírgulas desalinhadas país afora, numa indesejada profusão. Mas um homem que sequer abria maçanetas não iria percebê-lo. O saberia a reboque no fim daquele outubro. Quando avistou, de uma das centenas de janelas do palácio, massas de protesto se agigantando. E as vozes ganhando uma assombrosa nitidez. Fechou as cortinas. Ouviu o coro se adensando, agora em fúria. E partiu às pressas, pelas portas dos fundos. Os assessores que escolhessem seu destino. Distante que fosse. Estava então, ali, longe, a colar fragmentos, enquanto relia o discurso. Frases à beira da perfeição. Os sapatos lustrados com primor, como aguardasse a volta triunfal, nos braços do populacho. Sede de poder regada a formol.
Os cortejos lhe faziam falta. As filas dos beijos à mão em fins de ano. As paradas militares encomendadas fora de época. E, claro, os agrados finos. Gravatas de seda que assentavam sobre a curva de sua barriga. Pratarias, estátuas em miniatura. Retratos, milhares de retratos. Pintados de Norte a Sul do país. Sempre com um olhar mais generoso que o personagem vivo. Expostos nos imensos salões que mandara criar. Desfilava em passos de esquecimento pelos corredores. Admirado. Parava. Sorria ao que se punha como jogo de espelhos. E tocava parte dos quadros. Sentia as ondulações da tela. Como a se examinar numa prolongada autocarícia. Olhos até fechados.
A coleção de diplomas, os títulos de doutor honoris causa, é que ainda o avivavam. Boa parte agrupada agora nas paredes do apartamento acanhado. Cheirava a consolação de exílio. O restante, repousando em caixas no porão. Pouco as visitava. Lá estavam também o retrato da mulher, que o abandonou à porta do avião, e a faixa de quase dono de tudo e todos que governara. Atravessara noites insones a aproximar o tecido do peito, aconchegá-lo ao rosto. Sonhava com um retorno singular. Avenidas lotadas a saudá-lo, desde o aeroporto. Morreria construindo essa miragem.
E, nas passagens semanais ao confessionário, emprestaria mais tempo a dissolver os inimigos que à purgação dos erros. Consumia horas a descrever virtudes em autobenevolência. Era um incompreendido, sempre repetia. E viria logo o dia em que se curvariam a tal veredito. Arrependidos. O fraque e a cartola estariam preparados para o recomeço. Ganharia o perdão dos desafetos, e mesmo dos que caçou, como a ratos leprosos.
Resolvera tornar a escrever a velhos aliados. Dos quais não chegavam notícias havia anos. Reservaria o papel à amante, que o acolhera à porta naquela sexta-feira, como de costume.
O escalda-pés já estava pronto. Assentou os dedos gelados bem no fundo da bacia e começou a ditar. Falava, e mirava a ponta das unhas, pintadas num verde-e-amarelo. Tons de saudade. Ia pensando no arremate decididamente heroico do texto. A amante, mãos teatrais, inventava palavras. E expunha inspirações, ela mesma.
As cartas, sabia, jamais chegariam ao destino. Eram lembranças a ninguém. Daí lançá-las ao vento sem endereço às margens do Sena. E inda que chegassem, tinha certeza, encontrariam aquela gente girando as maçanetas a outros senhores. Adoçando cafés que, tempos antes, temperariam a veneno. De resto, não queria correr o risco de perdê-lo. Porque o velho tirano se convertera em mestre na arte do mimo, dos perfumes, dos presentes, dos brilhantes. Mais: da linguagem dos lençóis. Fazia como devorasse a pátria. E a pátria, a pátria, afinal, ali era ela. Soberana.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
* Por Eduardo Murta
O suspiro bafejado se convertia em formas densas, alongadas, gelificando ao ar daquela Paris. Lembrava soluços de abandonados. Na manhã fria da cidade, ele era um quase solitário ao banco da praça. Lia, pela terceira vez, o discurso de posse. Um rosário de promessas arrebatadoras. O fecho era o que mais lhe punha deslumbrado: “Construir uma nação sem fronteiras para o bem comum”. O que estava no papel ganhara morada definitiva nos compêndios da história. E só. Pouco ou nada fora transformado. Deserdados seguiram deserdados. Afortunados, mais afortunados. O texto não permitia reparos, porém. Se o reconstruísse, mudaria uma vírgula enviesada. Não mais.
O mal é que havia vírgulas desalinhadas país afora, numa indesejada profusão. Mas um homem que sequer abria maçanetas não iria percebê-lo. O saberia a reboque no fim daquele outubro. Quando avistou, de uma das centenas de janelas do palácio, massas de protesto se agigantando. E as vozes ganhando uma assombrosa nitidez. Fechou as cortinas. Ouviu o coro se adensando, agora em fúria. E partiu às pressas, pelas portas dos fundos. Os assessores que escolhessem seu destino. Distante que fosse. Estava então, ali, longe, a colar fragmentos, enquanto relia o discurso. Frases à beira da perfeição. Os sapatos lustrados com primor, como aguardasse a volta triunfal, nos braços do populacho. Sede de poder regada a formol.
Os cortejos lhe faziam falta. As filas dos beijos à mão em fins de ano. As paradas militares encomendadas fora de época. E, claro, os agrados finos. Gravatas de seda que assentavam sobre a curva de sua barriga. Pratarias, estátuas em miniatura. Retratos, milhares de retratos. Pintados de Norte a Sul do país. Sempre com um olhar mais generoso que o personagem vivo. Expostos nos imensos salões que mandara criar. Desfilava em passos de esquecimento pelos corredores. Admirado. Parava. Sorria ao que se punha como jogo de espelhos. E tocava parte dos quadros. Sentia as ondulações da tela. Como a se examinar numa prolongada autocarícia. Olhos até fechados.
A coleção de diplomas, os títulos de doutor honoris causa, é que ainda o avivavam. Boa parte agrupada agora nas paredes do apartamento acanhado. Cheirava a consolação de exílio. O restante, repousando em caixas no porão. Pouco as visitava. Lá estavam também o retrato da mulher, que o abandonou à porta do avião, e a faixa de quase dono de tudo e todos que governara. Atravessara noites insones a aproximar o tecido do peito, aconchegá-lo ao rosto. Sonhava com um retorno singular. Avenidas lotadas a saudá-lo, desde o aeroporto. Morreria construindo essa miragem.
E, nas passagens semanais ao confessionário, emprestaria mais tempo a dissolver os inimigos que à purgação dos erros. Consumia horas a descrever virtudes em autobenevolência. Era um incompreendido, sempre repetia. E viria logo o dia em que se curvariam a tal veredito. Arrependidos. O fraque e a cartola estariam preparados para o recomeço. Ganharia o perdão dos desafetos, e mesmo dos que caçou, como a ratos leprosos.
Resolvera tornar a escrever a velhos aliados. Dos quais não chegavam notícias havia anos. Reservaria o papel à amante, que o acolhera à porta naquela sexta-feira, como de costume.
O escalda-pés já estava pronto. Assentou os dedos gelados bem no fundo da bacia e começou a ditar. Falava, e mirava a ponta das unhas, pintadas num verde-e-amarelo. Tons de saudade. Ia pensando no arremate decididamente heroico do texto. A amante, mãos teatrais, inventava palavras. E expunha inspirações, ela mesma.
As cartas, sabia, jamais chegariam ao destino. Eram lembranças a ninguém. Daí lançá-las ao vento sem endereço às margens do Sena. E inda que chegassem, tinha certeza, encontrariam aquela gente girando as maçanetas a outros senhores. Adoçando cafés que, tempos antes, temperariam a veneno. De resto, não queria correr o risco de perdê-lo. Porque o velho tirano se convertera em mestre na arte do mimo, dos perfumes, dos presentes, dos brilhantes. Mais: da linguagem dos lençóis. Fazia como devorasse a pátria. E a pátria, a pátria, afinal, ali era ela. Soberana.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
Alguns tornam-se zumbis do que foram, ao perder o poder. Deveria haver um curso preparatório para fim de mandato, igual a preparo para se aposentar. Pobres órfãos dos salamaleques.
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