sexta-feira, 29 de junho de 2018

Um gol de placa contra a ditadura em Copa do Mundo - Urariano Mota


Um gol de placa contra a ditadura em

 Copa do Mundo


* Por Urariano Mota

As relações tortas entre Copa do Mundo e ditadores não foram exclusivas do Brasil. Da América Latina à Europa a utilização política do futebol foi a regra. Mas há pelo menos um caso que reúne coragem e brilho em um gol lindo, maior que o de todos atletas juntos até hoje. Recupero um texto sobre o tento do gênio a seguir.


Entre as imagens que nos vêm a partir do 11 de setembro de 1973, do dia em que houve o golpe militar contra Salvador Allende, entre tantas imagens vivas, uma poderia ser, com razão, a do presidente Allende resistindo de capacete em ultimo recurso, com alguns fiéis militantes às portas do palácio La Moneda. A imagem de Allende fala de um socialista democrata, que pela força das urnas julgava ter o poder, que é destruído ao fim, derrotado com a eloquência de bombas, tiros e crimes.

Outra imagem do golpe chileno poderia ser também a que correu mundo, dos livros sendo queimados por soldados do exército nas ruas do Chile. Em um país de grandes poetas e tradição humanista, essa foto escapou do paradoxo, porque ela se fez coerente com o assassinato do poeta Pablo Neruda pela ditadura. E depois, essa imagem dos livros no fogo é tão simples e pornográfica, ao mesmo tempo de tamanho didatismo sobre a ideologia fascista no seu carbono Pinochet, que um comentário passaria pelo já visto, ao lembrar e repetir ações de Hitler a Franco, todos ótimos queimadores de escritores, livros e inteligência.

Então falo rápido sobre uma imagem e personagem que marcam também. Não são muito divulgados no Brasil um gesto, a pessoa e o valor de Carlos Caszely. Ele foi um craque do futebol chileno. A wikipédia informa que Carlos Caszely é o jogador mais popular e querido da história do Colo-Colo e do Chile. Até hoje é chamado de El Chino, El Rey del Metro Cuadrado, ou de El Gerente. Mas o seu maior feito é este: astro da seleção de futebol do Chile, em cerimônia oficial dentro do palácio, no vigor de mortes e fuzilamentos de opositores, Carlos Caszely se negou a apertar a mão do ditador Augusto Pinochet.

Ou como ele próprio falou desse momento raro e belo, anos depois:

“Eu ouvi passos. Foi pavoroso. De repente as portas se abriram. Apareceu uma figura vestindo uma capa, de óculos escuros e quepe. Tinha uma cara amarga, suja, dura. Ele foi cumprimentar cada um dos jogadores qualificados para a Copa. Quando ele se aproximou, eu botei minhas mãos atrás das costas. Ele estendeu sua mão, mas me recusei a apertar. Como ser humano aquela era minha obrigação. Tinha todo um povo sofrendo nas minhas costas”. Mas que coisa.

As razões do gesto, desse heroísmo, são anteriores. Não foi um impulso louco. Bem antes, o jogador havia sido ligado ao ex-presidente Salvador Allende. O craque era socialista como o presidente morto. Depois do golpe, Caszely se transferiu para o futebol espanhol. E o que fez a canalha do regime no Chile? Perto da Copa de 1974, os militares sequestraram, prenderam e torturaram a mãe do jogador. Supõe-se que isso foi uma tentativa de calar Caszely e obrigá-lo a jogar pela seleção chilena. Entre os perseguidos da ditadura, ele era o principal jogador do futebol chileno, estrela do Colo-Colo e da seleção. E Caszely achou o ato de tortura contra a mãe tão estúpido, que declarou recentemente:

“Ainda hoje não está claro por que fizeram aquilo. Eles a prenderam e torturaram selvagemente, e até hoje não sabemos de que ela era acusada. Recordo um país triste, calado, silencioso, sem risos. Uma nação que entrava nas trevas. Eu sabia o que viria de cima. Eu tinha medo. Não por mim, mas por meus amigos e por minha família. Eu sabia que eles estavam em perigo por minhas ideias”.

Então sua mãe foi presa, torturada e solta, sem qualquer acusação. E pouco depois o jogador se encontra cara a cara com o ditador, na despedida para a Copa de 1974 da Alemanha. Então ele põe as mãos para trás, enquanto Pinochet se aproxima a cumprimentar um a um. Ele foi o único a rejeitar o ditador.

Enquanto escrevo, ao lembrar esse ato, sinto um cheiro de perfume, daqueles inesquecíveis, cujo cheiro e composição química vêm apenas da lembrança que cerca um gesto. Naquele maldito e mágico ano de 1973, quando o mundo conhecido vinha abaixo no momento exato em que grandes eram as esperanças, houve esse gesto de Caszely tão pouco ou nada divulgado. Eu soube dele há pouco tempo. Mas que coragem, podíamos dizer. E aqui, se espaço houvesse, deveríamos discutir o quanto estão errados os que julgam ser a coragem um atributo de valentões, de homens que zombam do perigo. Não é. A coragem é a fidelidade ao sentimento de honra, dever ou amor. Por isso dizemos: que coragem!, isto é, que afeto e grandeza em ser fiel ao mais íntimo. Sentimos naqueles braços para trás de Caszely, enquanto avançava contra ele o ditador, um bravo bravíssimo. Com certeza, o jogador tremia, mas não podia ainda assim ceder à mão de Pinochet no cumprimento.

Não sei, mas esse me parece ter sido o maior gol de placa da história.


* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
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