Sujeito Zero (12)
* Por Sergio Vilas Boas
Seu Edmundo e
Anita entram
no Rei do Kibe, onde os petiscos são honestos e a cerveja, gelada. Decorre um
intenso movimento de gente falando alto, uma confusão de interjeições,
impropérios, brincadeiras de mau e de bom gosto, risos forjados e espontâneos.
Seu Edmundo respeita a escolha de
Anita. Por mais impróprio que o local pareça, ele está acompanhado. E ambos têm
a sorte de conseguir um lugar no balcão, debaixo de um enorme ventilador,
porque até os azulejos suavam.
O atendente recolhe garrafas, copos e
pratos. Esfrega um pano úmido encardido no extenso balcão de aço inoxidável
irregular, pontuado de suaves amassados, como se tivesse estado sob chuva de
granizo. Rodeando-o, assentos de madeira fixos por uma estrutura de ferro. A
maioria dos freqüentadores são homens. Muitos parecem estar ali há dias.
- Como vão as coisas no banco?
- Indo.
- O gerente que me atendeu na porta da
agência é o tal?
- O próprio.
- Banco só pode ser um saco.
- Comigo ele não mexeu. Ainda.
- Pior eu, que fui demitida (Anita suspira.).
- Sabia que você não veio simplesmente
me ver.
- A gente não precisa ir tão depressa.
O balconista pergunta qual cerveja
querem, como se a escolha do que beber estivesse implícita desde o momento em
que se sentaram. Resta dizer a marca da cerveja. Mas Seu Edmundo pede um
guaraná, contrariando as tendências.
- Parou de beber mesmo, hein?
- Mas você pode pedir o que quiser.
O atendente pergunta o que vão comer.
Anita vacila, não devia ter nem um centavo na bolsa. O pedido do que comer,
entre outras coisas, também correrá por conta de Seu Edmundo.
- Dois quibes quentes, dos que saíram
agora. (Ele intervém; e coloca o maço de
cigarros sobre o balcão junto ao isqueiro Zippo falsificado no Paraguai que
Inês lhe dera de presente; Anita faz um comentário aparentemente sem
importância e tardio.)
- Olha, Ed, estou sem dinheiro no
momento.
- Aqui eles aceitam vale-refeição.
- Você continua o mesmo generoso, o
mesmo mão-aberta.
- Por que te demitiram? (E faz um muxoxo.)
- Alegaram corte de despesas.
O balconista traz as bebidas. Seu
Edmundo está com a garganta seca. Derrama o copo de guaraná espumante garganta
abaixo. Anita pede outro cigarro. Continua tensa, confusa, ávida para esmiuçar
o assunto. Seus problemas têm prioridade, sempre.
- Então é o seguinte: todo mundo está
topando qualquer parada, pegando o que pintar. Se eu fosse sozinha, Ed, tudo
bem, sozinha sempre me arranjei, sempre segurei a barra, mas não sou, tenho o
Tiago, você sabe, e ele já está na idade de entrar pra escola. Hoje fui fazer
um orçamento do material escolar dele e quase desmaiei com os preços.
A referência dela ao filho pode azedar
a noite. Já era tempo de ela saber o que a paternidade representa para Seu
Edmundo. A paternidade de um menino, diga-se. Ele não teve um menino, como
sonhou.
Anita sabe também o quanto ele está
carente e, portanto, manipulável. Óbvio que dormiam juntos de vez em quando. Mas a
trajetória da mão conduzindo o cigarro até a boca indicava o estado de tensão
dela. Tremura visível, não para menos. Além de tudo, foi preciso sussurrar:
- Estou grávida.
O balconista deixa sobre o balcão um
pratinho de metal com dois quibes grandes e alguns guardanapos de papel.
Quando Seu Edmundo era surpreendido por
alguma informação, soltava alguma frase desconexa a fim de desviar o curso da
conversa; uma que não deixasse suspeitas de que ele na verdade não tinha era
entendido a dimensão do que o interlocutor lhe dissera; ou fingia
desimportância palitando os dentes com as unhas; ou esfregava a ponta da língua
no céu da boca.
- Você devia levar essa firma na
Justiça do Trabalho. (Ele diz.)
Encontros entre Seu Edmundo e Anita
eram duelos de sentimentos feridos, não traduzíveis com os vocábulos listados
pelos dicionários de língua portuguesa. Se fosse movido a impulsos, teria
dito: Está grávida, sei. E daí?
- Coma seu quibe senão esfria, Anita. (E virou o copo tulipa com guaraná espumante,
que escorre devagar, refrescante. Precisa desta pequena pausa para respirar e
tudo o mais.)
- O que eu quero te pedir depende de
uma promessa, Ed.
A propósito, ele expira a fumaça do
Continental e aguarda. Anita joga seu toco de cigarro no chão, amassa-o com o
salto e passa o lado de fora da mão no rosto. Está mais angustiada do que se
pode imaginar.
- Olha pra mim, Ed.
- O que é?
O atendente encostado à chopeira com a
mão na torneira bisbilhota. Quando o olhar dele cruza com o de Seu Edmundo,
este passa a procurar outro ponto – o
teto, o ventilador, a porta da rua. Ágil, o sujeito equilibra a quantidade de
espuma dos copos.
Seu Edmundo tem de repensar seu papel
no drama de sua namorada. É duro enxergar a autenticidade dos valores dela. Até
pode ser mesquinharia ou inveja, mas num momento como este é preciso levar em
conta o tipo de relacionamento dos dois.
Anita não pega o guardanapo que Seu
Edmundo lhe oferece. Ele parece constrangido com os arredores, e tudo prossegue
como sempre. Pousa a mão nos ombros dela e massageia-os levemente. A essa
altura, qualquer gesto amigo a comoveria. Seu Edmundo não é um idiota isento de
malícia. Seus estratagemas emocionais eram precários, é verdade, mas suas
necessidades físicas são normais, e podem falar mais alto.
Os olhos de Anita estavam ligeiramente
úmidos, o que os deixava ainda mais brilhantes. É uma mulher vaidosa,
produzida. Seu Edmundo nem se deu conta de certas peruagens que o caráter dela
revelava. Ela era capaz de multiplicar seu poder de sedução conforme os
propósitos.
- Estou precisando de um empréstimo.
Assim que eu arrumar uns bicos, aproveito e pago também aquele outro galho que
você me quebrou um tempo atrás, lembra?
Conselhos ditos a essa altura soam
irônicos. Mais tarde, talvez. Numa situação de desespero, nunca se sabe o que
somos capazes de fazer. Ela pega a mão dele com carinho. Pele encerada, sedosa
de quem há muito não transporta pesos.
Ela sorri e deixa a outra mão
aterrissar sobre a perna do parceiro. Eles se misturavam com dificuldade, mas
havia uma química. O curioso é que, apesar disso, seus corpos se comunicam
bastante bem. O nó estava nas palavras. Pode-se dizer que as palavras foram um
problema para Seu Edmundo, principalmente com mulheres.
Anita raspa as unhas na calça dele, na
altura da coxa direita. A princípio ele não presta atenção nos movimentos dela.
Também não se desvia daquele olhar voraz que o vislumbra como alternativa
imediata. As ações das unhas excitam-no. A tal contaminação se alastrava por
todo o seu corpo. O descompasso, a carência, o fuso horário, a fome. A fome.
- Pode ser em cheque? (Ele pergunta.)
- Tendo fundos... (E suspira aliviada.)
Seu Edmundo saca do bolso traseiro da
calça a carteira de couro preto amarrotado, que abriga também o talão. Abre-o
sobre o balcão e preenche. Anita o acaricia. Tudo podia não passar de convite
para um brinde particular, mas não é o caso.
Eles têm lá seus códigos, como qualquer
casal fortuito. Por isso em certos momentos falta a ambos coragem para um tête-à-tête mais revelador. De soslaio,
Anita contempla a bela caligrafia de Seu Edmundo no papel dourado do cheque. O
que interessava a ela, no entanto, era o valor.
-
Pra que esse dinheiro, Anita?
Ela
não respondeu. Dobrou o cheque ponta com ponta, frisou e guardou na bolsa.
-
Valeu, Ed. Valeu.
Como
ele jamais perguntava a mesma coisa duas vezes, o silêncio dela resolveu a
questão. Mas daquele ponto em diante era ele quem mandava, e nenhum dos dois
pretendia desperdiçar mais tempo.
Às 20h18 (eles passaram somente 35
minutos no local) o balconista tirou a caneta presa na orelha e marcou xis nos
quadrinhos de refrigerante, cerveja e quibe. Antes de entregar a conta,
deu-lhes uma encarada molenga, de cima a baixo, seguida de uma suspicaz
intenção de rir, que não passou da intenção. De qualquer modo, o desagrado
apressou a liquidação da conta.
Enquanto Seu Edmundo destacava o
vale-refeição, Anita retocou o batom aberrante. Recobrou aquela sua nobreza
suburbana, embora já desgastada. Quanto a ele, deve estar se sentindo um garoto
que nunca fez amor, aquele receio de não saber como começar ou terminar. Ainda
por cima, saiu do Rei do Kibe com a sensação desagradável de desocupar seu
assento tendo outro sujeito já preparado para ocupá-lo.
***
Mais tarde ele se extraviou pelas ruas.
Não percebia o movimento urgente de pessoas, o ar poluído e a escuridão como
novidades bem-vindas. Parecia haver uma escuridão diferente no céu aquele
noite. Um estranho e tênue tom lilás preenchia as entranhas do breu.
Suas pupilas logo se adaptaram ao novo
estado de espírito, mais palpável, mais masculino. O passo era trôpego, as
pernas cambaleavam, talvez pelo tremendo esforço físico que acabara de
empreender. A alma, no entanto, volta lavada, cheirando a sabonete Lux do Hotel
Signus, onde passara algumas horas com Anita depois de guaranás, cervejas e
quibes.
No apagar das luzes, ela anunciou que
estava grávida e por isso precisava da ajuda do namorado, embora este não
tivesse nada a ver com a gravidez e sequer fora informado sobre o que sua
acompanhante pretendia fazer com o cheque de não sei quantos cruzados novos.
Ironia das ironias, o fato principal
era que Anita podia ter outro garoto, se quisesse. Seu Edmundo, que sempre
quis um menino, continuaria sem ter um. Em parte por causa de sua impecável
teimosia. Ele só admitia gerar um filho homem com Inês, nenhuma outra. Como ele
e Inês tiveram apenas filhas - Ava, Clara e Alma - Seu Edmundo, já naturalmente
sumido, se diluiu em meio a mulheres que não lhe deram a mínima.
* Jornalista,
escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente
da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os
Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis”
(2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.
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