Jeremias Astor
* Por
Oscar Dias Correa
Mas não era possível
descrever toda a fauna humana que Brasílio encontrou na Casa do Povo, como
chamava a Câmara. Eram cinqüenta e quatro figuras diversas, cada qual com um
jeito, uma cara, assentando-se ou se levantado ao comando da intimação do
presidente e dos líderes.
Muito mais proveitoso
seria contar-se, por exemplo, o que se passava na Secretaria, de onde saíam
prontinhos, estandardizados, os pareceres das Comissões. Na maioria, é claro.
Na taquigrafia, onde os taquígrafos faziam esforço tremendo, coisa comparável
aos trabalhos de algum valentão mitológico, para pôr em ordem as palavras do
Inácio Patranha ou do Sinésio Sobrense, ditas de envolta ao emaranhado de
idéias confusas, dignas do enunciado; ou dos cochichos da bancada da imprensa,
à qual os deputados dedicavam mais atenção do que à fala do presidente.
Você sabe, leitor
amigo, o que é a bancada da imprensa? Pois vou dizer-lhe, em poucas palavras:
são uns senhores que ficam, em geral, defronte dos deputados. quando eles
falam, conversam ou estão calados; que tomam, ou não tomam notas em papel sem
pauta, de preferência; que trocam idéias entre si, muito cordialmente, sem dar
nenhuma idéia nova em troca da que não recebem; e que, no dia seguinte, a gente
toda fica sabendo da opinião que tinham do que se passou na sessão a que
assistiram, ou que não tinham e a direção do jornal entendeu que era bom ter.
Entendido? Sim ou não,
é isto. E isto quer dizer: "manchetes", "sueltos", artigos
de fundo, editoriais, "barrigas", boatos, e tudo o que você vê
diariamente, com espantosa regularidade nos jornais. E nem sempre no mesmo
sentido, ainda que sempre com bons fundamentos.
Para esses homens se
fazem os discursos nas assembléias, ainda que não haja para eles saudação
regimental nos cabeçalhos, como não há para os eleitores. A eles se levam todas
as notícias: as reais, os boatos, e os "consta", variedade destes
últimos. A eles se dão as explicações das palavras menos pensadas, ou que se
julga nem o foram.
E a eles, no dia
seguinte, se procura catequizar, se a notícia da manhã não foi favorável. E,
conseguindo-se ou não, sempre amigos, hem? Sempre amigos.
Na Imprensa, ou antes,
no lugar onde se assentava a bancada da imprensa, havia coisa mais
interessante.
Era uma curiosa (se me
permite) personagem que se intitulava jornalista, em verdade um
"publicador" de escritos (não sei se os escrevia por si próprio) em
afamado jornal da Metrópole.
Curiosa. Não há
dúvida. Para um retrato, bem entendido. Nunca para uma prosa. Mesmo porque se
conversava com ele, quando ele queria, e não a gente; sobre o que ele queria;
enquanto queria; enfim, enfim, não lhe digo nada. Conclua.
Era alto, esguio,
magro, ossudo mesmo. Tinha uns cinqüenta e tantos anos. Talvez sessenta. Talvez
mais. Por que não setenta? Faces enrugadas, morenas, flácidas, desbotadas,
macilentas. (Perdoe-me, leitor, se carrego as tintas.) Os anos, ou a conversa,
que queria sempre ao pé do ouvido, haviam-lhe encurvado os ombros, numa
semicorcunda nada simpática.
A gravata borboleta
preta, permanentemente, e sempre a mesma, os encardidos contrastando, aqui e
ali, com o puído das dobras, realçava a brancura, às vezes duvidosa, do
colarinho de pontas viradas, escolhido de propósito para quem não deixava
descansar a saliência do corpo hióide, como chamam os doutores ao pomo de Adão,
ou maçã de Adão, ou nó de Adão, nó de garganta, no da goela, ou, simplesmente,
gogó.
Tinha predileção pelo
marrom. Urucubaca? Mera coincidência, dessas que a vida planta, toda hora, à
frente dos homens. E dava-lhe sorte, a ele, a cor da roupa. Ou não seria ela.
Peso, diziam, que dava
aos interlocutores, que sempre os achava, por mais voltas dessem, cruzando
passeios para o outro lado da rua, fazendo que não o viam, simulando pressa e
mais tentativas vãs.
Estava armado de uma
bengala, quando Brasílio o viu. E todas as outras vezes. E de uma pasta debaixo
do braço, sob a pressão dele, braço, e da bengala. E trajava também um colete
branco, bem usado, que também era permanente.
Conservador, parecia,
ainda que se dissesse liberal. Mas isso não vem ao caso, porque era conservador
nos trajos e liberal em política.
Tipo merecedor de mais
reparos.
Nariz judaico, o mais
que se puder imaginar; olhos empapuçados, com duas verrugas, uma de cada lado,
simetria perfeita; pés compridos, metido num verniz surrado e pontudamente
ofensivo, meias não se viu nunca, não que não usasse, mas porque jamais cruzava
as pernas, mesmo sentado.
Sempre de pé - era um
homem de atitude.
Brasílio não tivera
sorte com ele. Não lhe gostara da apresentação física. Nem se interessara por
suas conversas. E o resultado é que um dia, solicitado a conduzi-lo até Palácio
para uma audiência, Brasílio esquivou-se. O homem - chamava-se Jeremias Astor -
apertou-o; Brasílio escusou-se, mas, encantoado, amassado, cuspido (na
conversa, Jeremias perdigotava o interlocutor, agarrava-o pela gola do paletó,
puxava-lhe a gravata, a manga, dava-lhe tapinhas de repelão e de aconchego
etc.), Brasílio acabou negando-se a levá-lo.
Sofreu, então,
descompostura como não esperava, nem merecia. O homem desancou-o, oralmente. E
mesmo com a bengala nas mãos argumentou, algumas vezes, em tom suspeito.
Brasílio, calado e
pálido, ouviu o destampatório. E quando pôde retirar-se, conquistara um
desafeto - e algumas indulgências para o juízo final. Justamente.
(Brasílio, capítulo
LXXIV, 1968).
*
Jurista, político e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras.
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