segunda-feira, 23 de maio de 2016

Sem volta

* Por Daniel Santos

Ria tanto, e sem motivo aparente, que mal se agüentava em pé. A boca sem dentes e o corpo vacilante como se prestes a atacar tornavam-no amedrontador. Ria, por isso, ainda mais. Ria-se mesmo de sacolejar.

Apesar de tanta debilidade, resolveu atravessar a praça de circular vertigem por onde as pessoas volteavam em busca do rumo. A meio do caminho, encontrou um igual e se ampararam num abraço a calhar.

Depois, cheiraram cola e riram quase até caírem no meio da praça que girava. No ouvido, um zumbido os elevava acima da realidade. Melhor, impossível! Então, cheiraram mais, que a liberdade vicia.

Nunca mais a clausura do cotidiano – diziam-se pelo olhar. E foi assim, de comum acordo, e sem o previsível drama, que pegaram suas facas no bolso da calça. Um, dois golpes certeiros ... e estava feito!

Tombaram ainda rindo no centro do passeio concêntrico, em  definitiva síntese. Os passantes – antes chocados, curiosos – pisavam agora com rotineira indiferença a tintura do sangue sobre a última vertigem.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.








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