Lembrando a Ditadura
* Por Urda Alice Klueger
(Escrito em 1995 –
Depoimento)
Minha sobrinha Laura é
uma adolescente bonita e normal, que preza, acima de tudo, “ficar”, e que tem
que levar bronca para tirar boas notas na escola. Está com 12 anos, o que
significa que nasceu durante o período da “Abertura” do Presidente Figueiredo,
coisas, que, evidentemente, ela não lembra. Na sua cabeça só estão registrados
os tempos recentes, depois da queda da censura, e penso que ela mal e mal
lembra da passeata a que foi, quando da queda de Collor.
Outro dia, no Tipitin,
o bar dos fins de tarde, andei contando a ela como era nos tempos da Ditadura,
e seus grandes e inteligentes olhos azuis arregalaram-se de surpresa ao saber
que já existiu no Brasil um tempo em que tudo era diferente.
Como era no tempo da
ditadura? Quem tinha 12 anos, na época do golpe de 64, era eu, e no pequeno
mundo em que eu vivia, era tão grande o medo de um monstro pavoroso chamado
comunismo, que o golpe foi recebido como uma benção, uma libertação, como a
promessa de um novo tempo que não mais seria ameaçado por Moscou e por sua
irreligiosidade vermelha. Os pais da gente, os tios da gente, os vizinhos da
gente, todos estavam de acordo que o golpe era uma “revolução” que trazia a
solução para todos os problemas da país, e vivi nessa ilusão por muito tempo.
Aprendi, como todo mundo, a calar a boca, a não emitir opiniões, e como não
havia contestação no meio-ambiente em que vivia, parecia normal e natural ter
que calar a boca e não dar opiniões, embora, no começo, eu não tivesse opiniões
mesmo.
Em 1970, porém, eu fui
morar na casa da minha prima Rosi. Era o tempo dos Festivais Internacionais da
Canção, Geraldo Vandré acabara de compor “Pra não dizer que não falei de
flores”, Chico Buarque tinha músicas proibidas, Caetano e Gil estavam em Londres
– e minha prima Rosi nunca teve falta de opiniões. De repente, eu começava a
vislumbrar tudo o que não vira antes, e queria falar sobre o que pensava. Tinha
com quem falar: minha prima era politizada o suficiente para me abrir os olhos
muito e muito, mas como falar? Éramos produtos da Ditadura, conhecíamos o medo.
Em seis anos o povo já estava bem treinado, inclusive nós, adolescentes. Não se
podia abrir a boca, não se podia dizer o que se pensava, corria-se o risco de
se ser taxado de subversivo e desaparecer misteriosamente nos porões da
Ditadura. A insegurança e o medo de pensar eram tão correntes que não nos
revoltávamos contra eles; eles faziam parte do nosso dia-a-dia, pareciam-nos
naturais, achávamos que em todo o mundo as pessoas viviam assim.
Bem, as coisas
começavam a se aclarar para mim, e eu tinha com quem falar a respeito, mas
falar onde? Rosi e eu íamos e voltávamos juntas da escola, estávamos sempre
juntas, mas não podíamos falar sobre certos assuntos na frente de ninguém, nem
na escola, nem no ônibus, nem no ponto-de-ônibus, nem na rua, pois havia o medo
constante de que alguém nos ouvisse e nós nos complicássemos. Nem diante dos
amigos nos encorajávamos: poderíamos envolvê-los de alguma forma, ou poderíamos
ser ouvidas por alguém que levasse nossa conversa adiante. Em casa, também não
dava: os pais, para nos proteger, poderiam nos censurar por estarmos pensando.
Assim, Rosi e eu achamos uma solução: conversar sentadas num velho poço que
havia na casa dela, ao ar livre, poço cercado de gramados, onde estávamos a
salvo de qualquer curiosidade e de qualquer ouvido. E, nas tardes, sentávamos
lá fora, o olhar circunvagando para ver se não chegava ninguém, e nos
encorajávamos a malhar um timidíssimo pau no governo, pois nossa desinformação
era grande, tão grande quanto o da maioria dos brasileiros, e se não fosse
Vandré, Chico e Caetano, talvez nem tivéssemos nos dado conta que viver com
medo e com insegurança poderia estar errado.
Era assim que a gente
vivia, e foram estas e outras coisas que contei para minha sobrinha Laura, e
ela, segurando na mão seu copo de Coca-Cola, só sabia dizer uma palavra
moderna, que não lembro agora, mas cujo sentido é, com certeza, igual à que eu
vou usar:
- Sacanagem!!!
É, baita sacanagem
fizeram com a gente. Analiso-me hoje, em 1995, e vejo que ainda há resquício de
medo e insegurança no meu comportamento, sem dúvida deixados por aqueles anos
de escuridão. Ser manipulado deixa seqüelas. E, embora hoje possamos pensar e
falar, o quanto ainda somos manipulados por esse governo que está ai!
Blumenau, 05 de
Novembro de 1995.
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e quatro livros (o 24º
lançado em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições)
e “No tempo das tangerinas” (12 edições).
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