O filme Aquarius e Mendonça Filho
* Por
Urariano Mota
A notícia caiu não
como uma bomba, que destrói vidas, paisagem e patrimônio físico. Ainda que
guarde semelhança com a bomba de Hiroshima do poema de Vinícius de Moraes, a
notícia não veio como a rosa radioativa, estúpida, inválida. A notícia veio
como a confirmação das trevas, que cercam o Brasil do impeachment da presidenta
Dilma.
A notícia: “A
assessoria de Mendonça Filho, ministro da Educação e Cultura, afirmou que o MEC
ainda não decidiu o que fazer com o cargo público de Kleber Mendonça Filho,
diretor de Aquarius". O que isso quer dizer? Para quem não sabe, Kleber
Mendonça, além de cineasta, é coordenador de cinema da Fundação Joaquim Nabuco,
no Recife, que se vincula ao Ministério da Educação e Cultura.
Intranquilos pelo
anúncio de repressão ao um digno artista, tentemos compreender essa parada
contra a cultura nacional.
Comecemos pela
afirmação artística. De Kleber Mendonça Filho e seu filme Aquarius, o mundo
inteiro já fala, da Europa aos Estados Unidos, passando pelo Brasil que resiste
à barbárie. Aquarius é saudado pela melhor crítica cinematográfica, que fala
palavras como as do jornal Daily Telegraph:
"As complexidades
da sociedade brasileira, com seus estratos sociais e raciais, e também a
importância dos laços familiares, se transformam em uma teia de aranha para
Clara e o enredo. No final, você fica feliz de estar envolvido naquilo, e sem
vontade de se libertar”. Ou do francês Le Monde: "o filme confirma a
tendência de que ele se impõe como o mais belo de todos que vimos até agora no
festival". Ou do jornal The Guardian: “o filme pode ser visto como uma
metáfora do Brasil, com nepotismo, corrupção e cinismo em seus mais altos
escalões. Ele é um retrato de densa observação e o retrato soberbamente interpretado
de uma mulher de uma certa idade."
E do outro Mendonça, o
ministro perdão pois não quero ser irônico, da Educação e da Cultura, o que
vemos? Este não é um ministro cercado pela conspiração do atraso, como o vê a
“avançada” revista Veja. Não. Ele é o próprio atraso. Não só por ideologia
política, mas por ser desqualificado em absoluto para exercer a função que
responde. No seu currículo observamos que foi secretário da AgriCULTURA e
vice-presidente da Associação Nordestina de AviCULTURA. Portanto, de cultura
agrícola e de aves ele entende. Mas não do MinC, onde entrou como um centauro
sem parte humana a cavalgar em gentil trote. Da sua relação com o mundo
cultural, sabe-se que é genro do Marcos Vinicius Vilaça, ex-presidente da
Academia Brasileira de Letras. Mas genro bem distante do mundo, ora, do mundo,
até do cheiro de livros. Precavido, o sogro acadêmico jamais o mencionou como
referência no currículo, pois não é bobo.
Esse anúncio das
trevas nos intranquiliza primeiro, depois nos enche de raiva e indignação.
Ainda ontem, Fernanda Montenegro declarou que para o congresso cultura é coisa
de veado. Daí me vem de imediato a lembrança do que dizia um coronel no Recife
nos anos 70: “o cine de arte Coliseu é coisa de comunista e veado”. Kleber
Mendonça dirige o cinema da Fundação, que hoje é o nosso cinema de arte. Então
estamos bem na fita da volta à repressão dos anos Médici. Em lugar da saudação
em tapete vermelho, revemos um artista sofrer a perseguição daqueles anos. Bom
dia, ditadura!
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Os comentários desairosos contra a cultura de pessoas até então tidas como cultas estão estarrecendo e constrangendo. Será que são apenas cínicos ou é pior do que isso?
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