Prazer ou
obrigação?
Diz-se, amiúde, por aí, com ares de dogma, que para fazermos
bem alguma coisa, qualquer coisa, é indispensável que gostemos do que fazemos.
Vou bancar o chato e, mais uma vez, contradizer uma afirmativa, no caso esta.
Não se trata de regra universal e infalível que não comporte exceções. Aliás,
toda a regra tem lá a sua. E por que esta não haveria de ter?
Conheço pessoas que detestam o que fazem, mas executam bem o
que lhes compete fazer. Fazem-no por obrigação, para honrarem compromissos
assumidos e não decepcionam quem confia nelas. Tenho um amigo escritor que é
assim. Conheço-o há anos e sei que detesta escrever. Por que esse espanto? O
mais curioso é que tem um talento fantástico para a literatura. Tamanho, que
extrapola sua vontade.
É autor de vários livros e nenhum encalhou nas prateleiras
das livrarias. Tem contrato bastante extenso com uma editora de porte médio e
nunca deixou de cumpri-lo. A cada seis meses, “comparece” com um novo livro e
cada um é melhor do que o outro. Porém... detesta escrever.
Trata-se de um sujeito alegre, de bem com a vida, que
aprecia tudo o que de bom ela tem para nos proporcionar: boa comida, bebidas de
refinado gosto, mulheres bonitas, amizades fraternas etc.etc.etc. Está sempre
sorrindo e, invariavelmente, tem uma anedota inteligente e engraçada na ponta
da língua.
É dos raros escritores no País que sobrevive de literatura.
Como se vê, é um cara bem-resolvido, bem-sucedido e conhecidíssimo (não vou
revelar quem é, para não perder sua amizade, pois sou daqueles que contam o
“milagre”, mas não revelam o “santo”).
Lá um belo dia, no entanto, esse meu amigo muda bruscamente
de comportamento. Fica mais calado, não raro até taciturno, não participa das
patuscadas da turma (essa “patuscada” fui buscar lá no fundo do baú), e volta e
meia percebemo-lo distraído, como que fora do mundo. Nessas ocasiões,
invariavelmente, ele se confessa “grávido”. Grávido de um novo livro.
Afasta-se de nós por algumas semanas e quando retorna ao
nosso convívio, é como se nunca tivesse mudado. Volta a ser o mesmo sujeito
alegre de sempre, amante de boa comida, de bebida de refinado gosto, de
mulheres bonitas e retorna com anedotas inteligentes e engraçadíssimas na ponta
da língua. Passado algum tempo, ficamos sabendo que emplacou outro sucesso
literário. E ele jura que detesta escrever.
Não tem blog e nem site na internet, recusa-se a colaborar
com os que os têm, a muito custo consegui arrancar uma crônica dele para o
jornal em que trabalhava na ocasião e evita de se expor. Convidei-o para ser
colunista do Literário e, por muito pouco, ia perdendo um amigo. Ficou uma fera
comigo e disse para eu não mais chateá-lo. Não o chateei, claro.
Fora do período de “gravidez”, quem não o conheça bem,
jamais acreditará que se trate de um escritor, e dos consagrados. Mas é. E vem
emplacando sucesso após sucesso, e sem gostar de escrever. Como explicar isso?
Sei lá!
Há, contudo, algo que deveria ser sempre prazeroso para todos,
mas que para algumas pessoas não é: a leitura. Alguns professores entediados (é
verdade que remunerados muito aquém da importância da sua função), e temo que
seja a maioria, vêm transformando, há já bom tempo, esse refrigério da mente (e
da alma) do grande prazer que deve ser, em verdadeira tortura.
Em vez de motivarem os alunos a ler, mostrando-lhes o quanto
isso pode ser não somente útil, mas, sobretudo, prazeroso, impõem-lhes esse
exercício como simples e maçante “obrigação”. E dessa forma, a coisa não
funciona nunca. Muitos são até reprovados de série por não saberem interpretar
corretamente determinado texto, em geral de algum clássico da literatura
brasileira, o que acentua sua repulsa pelos livros.
Há escolas, porém, que agem ao contrário. Em vez da ameaça
implícita de castigo aos alunos, caso não leiam determinado livro e não o
interpretem corretamente, optam pelo incentivo. Algumas (todas particulares e,
portanto, pagas), fazem da leitura matéria extracurricular, que não vale para a
atribuição de nota, promovendo autênticos saraus literários, ocasião em que os
jovens descobrem que o que lhes parecia objeto de tortura, é, na verdade,
inesgotável fonte de prazer (além de conhecimento, claro).
Há colégios (geralmente os mantidos por denominações
religiosas), que realizam concursos anuais, dos quais podem participar todos os
alunos, de todos os cursos que têm. Os melhores textos são meticulosamente
revisados, criteriosamente editados e reunidos numa antologia anual, vendida
para a cobertura dos custos aos próprios participantes, aos demais estudantes,
bem como aos seus pais.
Esses volumes permanecem na biblioteca da escola, para
consulta em anos seguintes. E os jovens autores sentem orgulho imenso por integrar
tais antologias. Eu mesmo já revisei e editei vários desses livros e notei que
a qualidade teve sensível evolução de um ano para outro.
Esse procedimento estimula não somente a leitura, como, e
principalmente, a redação. Muitos desses alunos já manifestaram, ao cabo de
palestras que fiz nessas escolas, interesse em se tornarem escritores. Não
tenho dúvidas que vários deles se tornarão. E os que não se tornarem, serão,
com absoluta certeza, leitores compulsivos, para o resto de suas vidas.
Porquanto assimilaram corretamente a lição de que a leitura é um imenso prazer,
sempre, e jamais a temida tortura que muitos e muitos alunos, infelizmente,
entendem que seja.
Guardadas as devidas proporções, sou mais ou menos como esse
meu esquisito amigo que citei. Sou alegre, aprecio todos os prazeres da vida –
boa comida, bebida de refinado gosto, mulheres bonitas, amizades fraternas
etc.etc.etc. – e tenho sempre uma anedota na ponta da língua (só não sei se tão
engraçadas como as dele). Lá um belo dia, também, sinto os sintomas da
“gravidez” de um novo livro. Mas nossas semelhanças param por aí.
Ao contrário dele, não tenho como me afastar para um “parto”
tranqüilo e sem ser incomodado por ninguém. O nascimento de um novo livro
ocorre publicamente, em meio a mil e uma atividades, nos intervalos entre uma e
outra.
Tenho uma infinidade de compromissos a cumprir e, estejam
certos, cumpro-os todos à risca. Mas essa não é a nossa principal diferença. Ao
contrário do meu ilustre amigo, gosto de escrever. Não faço o sucesso dele, mas
também não tenho do que me queixar nesse aspecto. Como se vê, não é o prazer
pelo que se faz que determina seu êxito ou o seu fracasso. É o talento. E este
você pode ter, gostando ou não de tê-lo.
Boa leitura.
O Editor.
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Obrigar um menino de 13/14 anos a ler Dom Casmurro é empurrá-lo a constatação de que ler é horrível. Quando isso terminará?
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