quarta-feira, 18 de maio de 2016

Porque ser inferior é diferente de ser superior

* Por Mara Narciso


Há muito não existem certezas, ou melhor, as muitas certezas brigam entre si, quando num momento se diz uma coisa e depois se diz e se faz o contrário. Há quem negocie com a própria consciência alterando a compreensão dela e de si próprio e, consequentemente, o discurso conforme a conveniência. Surge daí outra postura, de acordo com a ocasião. Ou o pior: quando se mede um quilo de mil gramas para si e ao medir para o outro, ajustar para muito mais ou muito menos. Esse critério vem sendo usado como nunca, já que o pecado alheio é mais feio que o próprio. Onde ficou a justeza?

O ser humano é um animal adaptável, acostuma-se com adversidades como nenhum outro, mas enquanto os irracionais matam para comer, o homem mata para ver a queda. Diante da conquista não sabe o que fazer. A frouxidão moral ganhou força assustadora. É tão normal fazer errado, que nem é preciso explicar. A flexibilidade alcançou extensão perigosa, e as negociações esbarraram na linha do crime.

No preocupante momento nacional, nem de lupa está sendo possível separar o joio do trigo. De tanto ouvir iniquidades, alguns brasileiros se desconsolaram para sempre. E pode haver coisa mais funesta do que o fim da esperança? Chega a doer falar desse tipo de morte. Qualquer injustiçado entende.

Em 1973, num show ao vivo, tornado LP (disco de vinil), Maria Bethânia apresentou “Drama Terceiro Ato”, uma coleção de músicas que se tornaram eternas e de poemas tão fortes quanto a cantora. As letras cantam coisas assim: “quando eu choro é uma enchente, quando eu amo, eu devoro”, ou “por que me arrancaste um beijo, por que me incendiaste de desejo?” “E me arrastei e te arranhei e me agarrei aos seus cabelos”. “O amor é simplesmente o ridículo da vida”. “O que dizer, o que calar?” “A solidão vai me matar de dor”. “Marcada a ferro, a fogo em carne viva”. “Inútil dormir que a dor não passa.”

Numa certa altura Maria Bethânia fala com alto grau de dramaticidade: “Eu quero ser sempre aquilo com quem eu simpatizo. E eu torno-me sempre, mais cedo ou mais tarde, aquilo com quem eu simpatizo. Eu simpatizo com tudo. São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores, e são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também. Porque ser inferior é diferente de ser superior. Isso é uma superioridade a certos momentos de visão. Eu simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter, com outros eu simpatizo pela falta dessas mesmas qualidades. E com outros ainda eu simpatizo por simpatizar com eles. Como eu sou rainha absoluta na minha simpatia, basta que ela exista, para que tenha razão de ser” (Fernando Pessoa).

Quanto mal é capaz de gerar a incoerência em todos os níveis, mas especialmente na política? A decepção tomou conta dos tantos quanto ouvem pregações tétricas, grotescas, desumanas. Vendem-se ideias sem lógica desde o pessoal até o coletivo, numa espécie de enlouquecimento que tomou conta da nação. O barco é um só, a população está dividida, e o afundamento será geral. Caso o país estivesse humanizado, haveria colete salva-vidas para todos, porém, uma parcela dos passageiros não quer a divisão, mas nega.

Num mundo de cabeça para baixo, no qual o ruim é bom e vice-versa, falta pouco para o sol aparecer à noite, invertendo a situação noturna. Há um estado de incoerência tal que se tem um discurso desconexo, desarmônico, discordante, disparatado, contraditório. O Brasil é tudo isso ou nada disso. O país virou uma grande contradição.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   



2 comentários:

  1. É, tempos de reflexão e aprendizado, Mara. E de aprender respeitando a diversidade. Abraços, Mara.

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    1. Tempos conturbados, de muitas versões e pontos de vista. Que a luz possa nos ajudar. Obrigada, Marcelo.

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