Bóris Schneiderman, o imprescindível
* Por
Urariano Mota
Estas linhas ainda não
são o que eu gostaria de escrever sobre o maior tradutor da literatura russa em
língua portuguesa. Mas para não ficar à espera do melhor momento, embarco
ligeiro neste mesmo, que não é bom, nestes dias miseráveis de impeachment da
presidenta Dilma.
O imenso Boris
Schnaiderman, que nos deixou em 18 de maio, num típico acidente de falta de
higiene dos hospitais, foi humanista do gênero das pontes entre os povos.
Alguém poderia dizer “mas esse é o papel de todo bom tradutor, o de ser ponte
entre culturas e povos”. De fato, se a ligação entre pessoas de partes
diferentes do mundo se identifica com todo tradutor. Devo admitir que a minha
primeira definição para Boris Schnaiderman foi generalizante, não alcança a sua
essência e grandeza. Então pago o meu
erro com a definição a seguir. Boris Schnaiderman foi um homem que dele só se
pode falar com superlativos. Mas os sintéticos e absolutos ainda não lhe
atingem o cerne. Então procuremos ir ao específico.
Boris Schnaiderman foi
um homem que nos ensinou literatura russa. Notem, isso é mais que traduzir. Para os corações carentes de beleza, para as
almas agitadas que éramos e continuamos a vagar em carência permanente de
repouso e substância – vale dizer, para nós que nos contentávamos mal com as
traduções da literatura russa de segunda mão, e pensávamos assim ter lido os
clássicos pelo caminho do francês – ele trouxe a fonte, que era russa, mas
falava português. Observem que fazer isso já era, é uma tarefa grandiosa, digna
de ocupação e resposta à pergunta de um Senhor inclemente: “O que fazes da tua
vida?”.
Mas Boris
Schnaiderman, aquele pracinha que na segunda guerra mundial lia Dostoiévski
entre um tiro e outro de canhão, “não se ficava só atirando, tinha umas
pausas”, fez mais: encheu de substância o amor diáfano, pálido, que nos possuía
pelos maiores clássicos russos. O que isso quer dizer? Recolho algumas amostras
das suas inesquecíveis lições:
“Realmente, é injusto
falar em decréscimo da capacidade criativa de Tolstoi por causa da velhice,
como se faz muitas vezes. Ele continuava um vulcão, sempre escrevendo, com mil
planos fervilhando.
O conto ‘Depois do
Baile’ data de 1903, quer dizer, escrito aos setenta e cinco anos, mas é
certamente uma das obras mais perfeitas que produziu. Poucas vezes, em
literatura, o fato da alienação, do alheamento do homem em relação aos seus
semelhantes, que permite suportar com a maior tranqüilidade o sofrimento do
próximo, vê-lo com indiferença e até participar de atos iníquos, foi descrito
com esta mestria. E o indivíduo sensível, que se revolta interiormente contra a
injustiça, torna-se um marginal, um ser inferior na sociedade (embora no início
do relato se diga que ele era ‘respeitado por todos’)”.
E mais:
“Evidentemente, isto
(os diários de Tolstoi, onde ele expunha sem reservas o que via e sabia da
própria mulher) atormentava Sofia Andrêievna. E esta mulher extraordinária
vingou-se do marido do modo mais terrível: escreveu também os seus diários,
onde contava os detalhes mais íntimos de sua vida com ele, inclusive pormenores
de vida sexual, embora ao mesmo tempo tivesse pudores de colegial, chegando a
referir-se ao cicio menstrual como ‘as minhas circunstâncias femininas’. Eis
uma anotação sua de 1863, portanto um ano após o casamento: ‘Ele é velho e
demasiadamente absorto. E eu sinto hoje tão forte a minha mocidade, tenho tanta
necessidade de um pouco de loucura! Em vez de dormir, eu gostaria tanto de dar
cambalhotas. Mas com quem?’ E ainda no mesmo ano: ‘Eu sou a satisfação, a
criada, o móvel com o qual se está acostumado, a mulher.’ Enfim, era uma digna
companheira de Tolstoi, com extremos de lucidez e oscilação entre a paixão mais
ardente e o moralismo mais violento.
A tragédia final teve
como desencadeante os malfadados diários. Tolstoi anotaria que na noite de 27
para 28 de outubro despertou com a luz intensa que vinha de seu escritório: era
Sofia Andrêievna que procurava algo e provavelmente lia (às escondidas os diários
do escritor). Revoltado, decidiu abandonar tudo. E realmente, partiu por volta
das cinco da manhã, deixando uma carta de despedida para a mulher, onde
lamentava o desgosto que lhe estava causando, mas afirmando que não podia
proceder de modo diferente”.
Não sei se com essas
breves transcrições consegui dar uma ideia do imenso papel de Boris
Schnaiderman, um tradutor e mestre de literatura russa para todos nós. Um
superlativo que nos revelou humanidades, em resumo.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
As intimidades do autor despertam tanta curiosidade quanto a sua obra, no caso de Tolstoi. O tradutor Boris Schnaiderman teve papel importante ao trazer a escolha das palavras para o mais perto possível da intenção do autor.
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