sexta-feira, 27 de maio de 2016

Bóris Schneiderman, o imprescindível

* Por Urariano Mota


Estas linhas ainda não são o que eu gostaria de escrever sobre o maior tradutor da literatura russa em língua portuguesa. Mas para não ficar à espera do melhor momento, embarco ligeiro neste mesmo, que não é bom, nestes dias miseráveis de impeachment da presidenta Dilma.

O imenso Boris Schnaiderman, que nos deixou em 18 de maio, num típico acidente de falta de higiene dos hospitais, foi humanista do gênero das pontes entre os povos. Alguém poderia dizer “mas esse é o papel de todo bom tradutor, o de ser ponte entre culturas e povos”. De fato, se a ligação entre pessoas de partes diferentes do mundo se identifica com todo tradutor. Devo admitir que a minha primeira definição para Boris Schnaiderman foi generalizante, não alcança a sua essência e grandeza.  Então pago o meu erro com a definição a seguir. Boris Schnaiderman foi um homem que dele só se pode falar com superlativos. Mas os sintéticos e absolutos ainda não lhe atingem o cerne. Então procuremos ir ao específico.

Boris Schnaiderman foi um homem que nos ensinou literatura russa. Notem, isso é mais que traduzir.  Para os corações carentes de beleza, para as almas agitadas que éramos e continuamos a vagar em carência permanente de repouso e substância – vale dizer, para nós que nos contentávamos mal com as traduções da literatura russa de segunda mão, e pensávamos assim ter lido os clássicos pelo caminho do francês – ele trouxe a fonte, que era russa, mas falava português. Observem que fazer isso já era, é uma tarefa grandiosa, digna de ocupação e resposta à pergunta de um Senhor inclemente: “O que fazes da tua vida?”.

Mas Boris Schnaiderman, aquele pracinha que na segunda guerra mundial lia Dostoiévski entre um tiro e outro de canhão, “não se ficava só atirando, tinha umas pausas”, fez mais: encheu de substância o amor diáfano, pálido, que nos possuía pelos maiores clássicos russos. O que isso quer dizer? Recolho algumas amostras das suas inesquecíveis lições:

“Realmente, é injusto falar em decréscimo da capacidade criativa de Tolstoi por causa da velhice, como se faz muitas vezes. Ele continuava um vulcão, sempre escrevendo, com mil planos fervilhando.

O conto ‘Depois do Baile’ data de 1903, quer dizer, escrito aos setenta e cinco anos, mas é certamente uma das obras mais perfeitas que produziu. Poucas vezes, em literatura, o fato da alienação, do alheamento do homem em relação aos seus semelhantes, que permite suportar com a maior tranqüilidade o sofrimento do próximo, vê-lo com indiferença e até participar de atos iníquos, foi descrito com esta mestria. E o indivíduo sensível, que se revolta interiormente contra a injustiça, torna-se um marginal, um ser inferior na sociedade (embora no início do relato se diga que ele era ‘respeitado por todos’)”.   

E mais:

“Evidentemente, isto (os diários de Tolstoi, onde ele expunha sem reservas o que via e sabia da própria mulher) atormentava Sofia Andrêievna. E esta mulher extraordinária vingou-se do marido do modo mais terrível: escreveu também os seus diários, onde contava os detalhes mais íntimos de sua vida com ele, inclusive pormenores de vida sexual, embora ao mesmo tempo tivesse pudores de colegial, chegando a referir-se ao cicio menstrual como ‘as minhas circunstâncias femininas’. Eis uma anotação sua de 1863, portanto um ano após o casamento: ‘Ele é velho e demasiadamente absorto. E eu sinto hoje tão forte a minha mocidade, tenho tanta necessidade de um pouco de loucura! Em vez de dormir, eu gostaria tanto de dar cambalhotas. Mas com quem?’ E ainda no mesmo ano: ‘Eu sou a satisfação, a criada, o móvel com o qual se está acostumado, a mulher.’ Enfim, era uma digna companheira de Tolstoi, com extremos de lucidez e oscilação entre a paixão mais ardente e o moralismo mais violento.

A tragédia final teve como desencadeante os malfadados diários. Tolstoi anotaria que na noite de 27 para 28 de outubro despertou com a luz intensa que vinha de seu escritório: era Sofia Andrêievna que procurava algo e provavelmente lia (às escondidas os diários do escritor). Revoltado, decidiu abandonar tudo. E realmente, partiu por volta das cinco da manhã, deixando uma carta de despedida para a mulher, onde lamentava o desgosto que lhe estava causando, mas afirmando que não podia proceder de modo diferente”.

Não sei se com essas breves transcrições consegui dar uma ideia do imenso papel de Boris Schnaiderman, um tradutor e mestre de literatura russa para todos nós. Um superlativo que nos revelou humanidades, em resumo.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.



Um comentário:

  1. As intimidades do autor despertam tanta curiosidade quanto a sua obra, no caso de Tolstoi. O tradutor Boris Schnaiderman teve papel importante ao trazer a escolha das palavras para o mais perto possível da intenção do autor.

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