Testemunhas
de uma época
As artes foram as primeiras e fundamentais manifestações de
inteligência dos nossos ancestrais das cavernas. Os que aprenderam a expressar
suas vontades, pensamentos e sentimentos e se fizeram entendidos por outros
membros do clã, não apenas sobreviveram às condições hostis de um mundo
perigoso e desconhecido, cheio de mistérios e indagações, em que o homem era um
dos animais mais frágeis e desprotegidos da natureza, como evoluíram (mental e
por conseqüência materialmente), progrediram e lançaram as sementes da
civilização. Os que não conseguiram essa façanha, ou foram assimilados por
tribos mais fortes e esclarecidas, ou, simplesmente, pereceram.
O que vemos neste século XXI da era Cristã, repleto de
maravilhas e horrores, começou há milênios, lá atrás, na bruma dos séculos, com
o solitário e selvagem artista, que pela primeira vez conseguiu reproduzir, no
teto de sua caverna, uma caçada. Acreditava que aqueles desenhos rústicos que
fazia com terracota tinham poderes mágicos. Ou seja, que paralisariam os
animais que pretendia abater e os tornariam presas fáceis às suas rústicas
armas. Precisava abatê-los. Afinal, seria com a sua carne que iria se alimentar
e alimentar o grupo. Seria com sua pele que se vestiria e aos membros do clã.
Seria com seus ossos que fabricaria utensílios que lhe facilitassem o cotidiano
etc.
Daquelas rústicas figuras surgiram os alfabetos. E destes,
esta maravilha, a que não damos valor – pois que conhecemos desde que nascemos
–, mas que sem ela, estaríamos, certamente, ainda naquelas insalubres e
instáveis cavernas, vivendo como bichos selvagens: a escrita. Foi ela que
possibilitou o registro das descobertas (das mais comezinhas às
transcendentais) e sua transmissão às sucessivas gerações, impedindo que estas
retroagissem à barbárie. Foi ela que desenvolveu o raciocínio e consolidou a
razão. E ela é, hoje, essa poderosa ferramenta da nossa atividade: a criação
literária.
O escritor é a grande testemunha de uma época. Contudo, não
se limita a testemunhar, mas reproduz o que vê, ouve, pensa e sente, mostrando
às gerações futuras como se vivia em seu tempo. Nenhum historiador sério pode
escrever a história de qualquer período do passado, com exatidão e verdade, se
não consultar os livros dos escritores dessa época. São eles que refletem, com
exatidão, como eram as pessoas, o que sentiam, como agiam, onde moravam, como
se relacionavam etc. nesse determinado tempo.
Os livros que escrevemos, mesmo os que resultem em
monumentais encalhes, nunca são inúteis. Pelo contrário, são importantes,
importantíssimos, muito mais do que eventualmente venhamos a nos damos conta.
São “mensagens colocadas em garrafas”, lançadas no vasto mar das eras. E, a
despeito da vastidão desse oceano do tempo, sempre haverão de cair, um dia, nas
mãos de alguma pessoa curiosa, que saberá, por nosso intermédio, como nossa
geração vivia, o que pensava e o que sentia, séculos, quiçá milênios após nossa
extinção física.
Em nossas biografias,
certamente aparecerão os textos que viermos a produzir. Um dia, provavelmente
na virada do século XXI para o XXII, nossos relatos, espontâneos e
despreocupados, serão objetos de acurado estudo por parte de estudantes do
futuro, da mesma forma que os de Machado de Assis, Lima Barreto, Aluízio
Azevedo e tantos outros foram um dia para nós. Exagero? Longe disso!
Os escritores citados foram
testemunhas do seu tempo. Descreveram o que pensavam, como se vestiam, onde
moravam etc. as pessoas do século XIX. Nós temos o privilégio de fazer o mesmo,
mas abrangendo dois séculos, em vez de apenas um, dos quais fomos “testemunhas”
(pelo menos de trechos deles): os XX e XXI.
Numa rápida passada de olhos
nos lançamentos das editoras, podemos constatar que já há alguns livros
tratando da história do século passado. E nos surpreendemos. Afinal,
testemunhamos boa parte desses acontecimentos que hoje já são história. Vivemos
parte deles. De alguns, fomos até personagens, mesmo que secundários.
Resistimos às ditaduras, nos
horrorizamos com as duas bombas atômicas que em questão de minutos varreram do
mapa as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, tomamos ciência do
esfacelamento de uma superpotência, a União Soviética. Alguns de nós
testemunhamos o dia em que Neil Armstrong se tornou o primeiro homem a pisar no
solo da Lua. Emocionamo-nos com as mortes de Juscelino Kubitschek, Tancredo
Neves e Ayrton Senna que traumatizaram o País. E assim por diante.
Todos esses fatos, hoje,
constituem pano de fundo de nossos contos e romances (ou de boa parte deles). O
conhecimento de história é importantíssimo para o escritor de ficção. Dá
verossimilhança às suas produções, situando suas histórias num determinado
período, com seu respectivo contexto.
Claro que posso criar mundos em
profusão, distantes no tempo e no espaço, mas que só existem em minha
imaginação, como fazem os autores de ficção científica. Eles avançam não parcos
anos no calendário, mas milênios. Isso, contudo, não acumplicia o leitor. Tira
um pouco a verossimilhança do enredo. As descrições das cidades, pessoas,
indumentárias, moradias etc. soam artificiosas, forçadas, inverossímeis. O
leitor gosta de se identificar com cenários e personagens que conhece (ou julga
conhecer).
Os textos que publicamos hoje que,
ás vezes, passam batidos ao olhar do leitor menos atento, amanhã serão
procurados com avidez. Mesmo que não venhamos a nos dar conta, são documentos
da nossa época. Afinal, somos testemunhas oculares de parte da história. Mas
levamos uma vantagem sobre as demais testemunhas: temos talento e disposição para
registrar, em texto, o que acontece tanto em nós, em nosso interior, quanto ao
nosso redor. Pense nisso,
escritor amigo.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Este texto já apareceu aqui há pouco tempo, no dia 22 de maio, último domingo.
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