O viúvo
* Por
Artur Azevedo
Na véspera de partir
para a Europa, o doutor Claudino, sem prever o fúnebre espetáculo de que ia ser
testemunha, foi despedir-se do seu velho camarada Tertuliano.
Ao aproximar-se da
casa, ouviu berreiro de crianças e mulheres, e a voz de Tertuliano, que
dominava de vez em quando o alarido geral, soltando, num tom estrídulo e
angustioso, esta palavra: “Xandoca”.
O doutor Claudino
apressou o passo, e entrou muito aflito em casa do amigo.
Havia, efetivamente,
motivo para toda aquela manifestação de desespero. Tertuliano acabava de
enviuvar. Havia meia hora que dona Xandoca, vítima de uma febre puerperal,
fechara os olhos para nunca mais abri-los.
O corpo, vestido de
seda preta, as mãos cruzadas sobre o peito, estava colocado num canapé, na sala
de visitas. À cabeceira, sobre uma pequena mesa coberta por uma toalha de
rendas, duas velas de cera substituíam, aos dous lados de um crucifixo, o bom e
o mau ladrão.
Tertuliano, abraçado ao cadáver, soluçava
convulsamente, e todo o seu corpo tremia como tocado por uma pilha elétrica. Os
filhos, quatro crianças, a mais velha das quais teria oito anos, rodeavam-no
aos gritos.
Na sala havia um
contínuo fluxo e refluxo de gente que entrava e saía, pessoas da vizinhança,
chorando muito, e indivíduos que, passando na rua, ouviam gritar e entravam por
mera curiosidade.
O doutor Claudino
estava impressionadíssimo. Caíra de supetão no meio daquele espetáculo
comovedor, e contemplava atônito o cadáver da pobre senhora que, havia quatro
dias, encontrara na rua da Carioca, muito alegre, levando um filho pela mão e
outro no ventre, arrastando vaidosa a sua maternidade feliz.
Tertuliano, mal que o
viu, atirou-se-lhe nos braços, inundando-lhe do lágrimas a gola do casaco; o
doutor Claudino estava atordoado, cego, com os vidros do pince-nez embaciados
pelo pranto, que tardou, mas veio discreta, reservadamente, como um pranto que
não era da família.
- Isto foi uma
surpresa... uma dolorosa surpresa para mim - conseguiu dizer com a voz
embargada pela comoção. - Parto amanhã para a Europa, no Níger... vinha
despedir-me de ti... e dela... de dona Xandoca e... vejo que... que... que...
E o doutor Claudino
fez uma careta medonha para não soluçar.
- Dispõe de mim, meu
velho; estou às tuas ordens, bem sabes.
- Obrigado - disse
Tertuliano numa dessas intermitências que se notam nos maiores desabafos - o
Rodrigo, aquele meu primo empregado no foro, já foi tratar do enterro, que é
amanhã às dez horas.
Fazendo grandes
esforços para reprimir a explosão das lágrimas, o viúvo contou ao doutor
Claudino todos os incidentes da rápida moléstia e da morte de dona Xandoca.
- Uma coisa
inexplicável! Nunca a pobre criatura teve um parto tão feliz... A parteira não
esperou cinco minutos:.. Uma criança gorda, bonita... Está lá em cima, no
sótão... hás de vê-la. De repente, uma pontinha de febre que foi aumentando,
aumentando... até vir o delírio... Mandei chamar o médico... Quando o médico
chegou, já ela agoniza... a... va!...
E Tertuliano,
prorrompendo em soluços, abraçou-se de novo ao doutor Claudino.
No dia seguinte, a
cena foi dolorosíssima. Antes de se fechar o caixão, Tertuliano quis que os
filhos beijassem o cadáver, medonhamente intumescido e decomposto. Ninguém
reconhecia dona Xandoca, tão simpática, tão graciosa, naquele montão informe de
carne pútrida.
Fecharam o caixão, mas Tertuliano agarrou-se a
ele e não o queria deixar sair, gritando: - Não consinto! não quero que a
levem, daqui! - Foi preciso arrancá-lo à força e empurrá-lo para longe. Ele
caiu e começou a escabujar no chão, soltando grandes gritos nervosos. Três
senhoras caíram também com espectaculosos ataques. As crianças berravam.
Choravam todos.
De volta do enterro, o
doutor Claudino, conquanto muito atarefado com a viagem, não quis deixar de
fazer uma última visita a Tertuliano.
Encontrou-o num estado
lastimoso, sentado numa cadeira da sala de jantar, sem dar acordo de si,
rodeado pelos filhos, o olhar fixo no mísero recém-nascido, que a um canto da
casa mamava sofregamente numa preta gorda.
- Tertuliano, adeus. Daqui a meia hora devo
estar embarcando. Crê que, se pudesse, adiava a viagem para fazer-te
companhia... Adeus!
O viúvo lançou-lhe um
olhar vago, um olhar que nada exprimia; sacudiu molemente a mão, e murmurou:
- Adeus!
Às sete horas da noite
o doutor Claudino, sentado na coberta do Níger, contemplando as ondas,
esplendidamente iluminadas pelo luar, pensava naquela olhar vago de Tertuliano,
naquele adeus terrível, e pedia aos céus que o seu velho camarada não houvesse
enlouquecido.
Meses depois, a
exposição de Paris atordoava-o; mas de vez em quando, lá mesmo, na Galeria das
Máquinas, no Palácio das Artes, ou na Torre Eiffel, voltava-lhe ao espírito a
lembrança daquela cena desoladora do viúvo rodeado pelos orfãozinhos, e
repercutia-lhe dentro d'alma o som daquele adeus pungente e indefinível.
Interessava-se muito
por Tertuliano. Escreveu-lhe um dia, mas não obteve resposta. Pobre rapaz!
viveria ainda? a sua razão teria resistido àquele embate violento?
Depois de um ano e
quatro meses de ausência, o doutor Claudino voltou da Europa, e a sua primeira
visita foi para Tertuliano, que morava ainda na mesma casa.
Mandaram-no entrar
para a sala de jantar. Tertuliano estava sentado numa cadeira, sem dar acordo
de si, rodeado pelos filhos, o olhar fixo no mais pequenito, que estava muito
esperto, brincando no colo da preta gorda.
- Tertuliano? -
balbuciou o doutor Claudino.
O viúvo lançou-lhe um
olhar vago, um olhar que nada exprimia; sacudiu molemente a mão, e murmurou:
- Adeus.
Depois, dir-se-ia que
se fizera subitamente a luz no seu espírito embrutecido. Ele ergueu-se de um
salto, gritando:
- Claudino! - e atirou-se
nos braços do velho camarada, exclamando entre lágrimas: - Ah! meu amigo! perdi
minha mulher!...
- Sim, eu sei, mas já tinhas tempo de estar
mais consolado... Que diabo! Sê homem! Já lá se vão quatorze meses!...
- Como quatorze meses? seis dias...
- Ora essa! pois não
se lembras que acompanhei o enterro de dona Xandoca?
- Ah! tu falas da
Xandoca... mas há três meses casei-me com outra... a filha do major Seabra, e
há seis dias estou viu...ú...vo! E Tertuliano, prorrompendo em soluços,
abraçou-se de novo ao doutor Claudino.
(Contos fora de moda,
1894).
*
Jornalista e teatrólogo, membro da Academia Brasileira de Letras.
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