O dia em branco da poesia
* Por Urariano Mota
Esta semana, em 14 de março, passou apagado o dia da poesia. Em meio a tantos problemas mais graves, de terremotos a vulcões, de vazamento de usinas nucleares a tsunamis, é natural que lembrar a poesia, em meio a tamanho inferno, pareça mais um descabido luxo de quem anda nas nuvens e se alimente de sopro de brisa.
Bem que o poeta Geraldino Brasil já nos havia advertido no poema Classe Média:
“Um médico
Ótimo na família.
Um executivo
Ótimo.
Um engenheiro
Um arquiteto
Um magistrado
Ótimo.
Um poeta
Melhor na família dos outros”
Não vem ao caso lembrar o valor de humanidade que dá a poesia, nem reclamar como um louco que ela é um espaço sem remédio na imprensa. Ou que a poesia exige presença até mesmo quando a espécie humana se vê ameaçada, como agora. Então lembro o poeta Alberto da Cunha Melo em alguns momentos.
Ele dava plantão no Bar da Bete, em Olinda, em um lugar exclusivo, encostado à parede, de frente para o mar de Casa Caiada. Bete, a dona meio insana, era maternal ao extremo com ele: comprava-lhe garrafas de conhaque, servidas tão somente a Alberto, todas as tardes e noites. Ele bebia paciente, gole por gole, todas, mas só pagava quando chegava o fim do mês. Às vezes o salário do poeta atrasava, o dia 30 não vinha, a sede em algumas estações era maior, e Alberto entrava nos conhaques do outro mês.
No ônibus, quando eu o encontrava, ao lhe perguntar "Como vai a saúde, Alberto?", ele respondia, com uma sombra nos olhos, “Boa, para a minha idade". E conversávamos. Melhor dizendo, eu aprendia. Porque Alberto, alheio à assistência do ônibus que começava a encher, sem medo da zombaria ou do motejo da gente, punha-se a falar sobre poesia com a mais pura sinceridade e desarmamento. E me falava da estupidez da distinção entre rimas ricas e rimas pobres. E me abria os olhos para os versos belíssimos de Camões cheios de rimas "pobres". E me ensinava, quase num grito, para abafar o barulho:
- O Camões ruim está muito acima da média da poesia em língua portuguesa.
Ele me falava enquanto o motorista estrondava música no rádio, num brega infernal. Ele não se dava conta do aperto de gente em volta, porque a essa altura fazia uma mesura, com um pedido de desculpa aos parnasianos, que estavam a quilômetros e há quilômetros do coletivo:
- Olavo Bilac tinha razão ao dizer que a rima pode revelar um verso novo, que antes não sabíamos. Eu descobri isso, na prática.
“Os versos brancos não são uma invenção moderna, nem sempre a poesia teve rima”, ele me dizia. Então eu, como um novo Burguês Fidalgo, lhe perguntava: “Então os clássicos antigos faziam poesia sem rima?” (Me dava vontade de perguntar se existia poesia em prosa, mas me calava):
- Olhe. A rima vem da Idade Média, com a grande influência árabe, ele me respondia.
Então ele se levantava para descer do ônibus. Além do fato de ser um falante esquisito, as pessoas não o viam. O poeta não viam. De O Homem Invisível de Wells me lembrava sempre. O poeta é, era o homem invisível. E pensava que essa ignorância caminhava além do círculo de trabalhadores que viajavam no ônibus. Alcançava o próprio poder público, porque o poeta Alberto da Cunha Melo, com mais de 60 anos, recebia a generosidade de governantes que lhe permitiam trabalhar em uma biblioteca pública... menos de dois salários mínimos.
Houve uma vez em que eu, depois de bem observar as cervejas que ele bebia nos bares, convidei-o para a minha casa, para que assistíssemos juntos a um programa de televisão dedicado a Canhoto da Paraíba. Que fiz? Pedi a meu filho que comprasse as marcas de cerveja que eu sabia ser do costume do poeta beber. O grande Alberto se angustiou:
- Por favor, essa daí não. Se puder, mande buscar uma cerveja melhor. Eu bebo a mais barata porque não posso pagar outra!
E no entanto, o poeta era capaz de linhas luminosas como estas:
* Por Urariano Mota
Esta semana, em 14 de março, passou apagado o dia da poesia. Em meio a tantos problemas mais graves, de terremotos a vulcões, de vazamento de usinas nucleares a tsunamis, é natural que lembrar a poesia, em meio a tamanho inferno, pareça mais um descabido luxo de quem anda nas nuvens e se alimente de sopro de brisa.
Bem que o poeta Geraldino Brasil já nos havia advertido no poema Classe Média:
“Um médico
Ótimo na família.
Um executivo
Ótimo.
Um engenheiro
Um arquiteto
Um magistrado
Ótimo.
Um poeta
Melhor na família dos outros”
Não vem ao caso lembrar o valor de humanidade que dá a poesia, nem reclamar como um louco que ela é um espaço sem remédio na imprensa. Ou que a poesia exige presença até mesmo quando a espécie humana se vê ameaçada, como agora. Então lembro o poeta Alberto da Cunha Melo em alguns momentos.
Ele dava plantão no Bar da Bete, em Olinda, em um lugar exclusivo, encostado à parede, de frente para o mar de Casa Caiada. Bete, a dona meio insana, era maternal ao extremo com ele: comprava-lhe garrafas de conhaque, servidas tão somente a Alberto, todas as tardes e noites. Ele bebia paciente, gole por gole, todas, mas só pagava quando chegava o fim do mês. Às vezes o salário do poeta atrasava, o dia 30 não vinha, a sede em algumas estações era maior, e Alberto entrava nos conhaques do outro mês.
No ônibus, quando eu o encontrava, ao lhe perguntar "Como vai a saúde, Alberto?", ele respondia, com uma sombra nos olhos, “Boa, para a minha idade". E conversávamos. Melhor dizendo, eu aprendia. Porque Alberto, alheio à assistência do ônibus que começava a encher, sem medo da zombaria ou do motejo da gente, punha-se a falar sobre poesia com a mais pura sinceridade e desarmamento. E me falava da estupidez da distinção entre rimas ricas e rimas pobres. E me abria os olhos para os versos belíssimos de Camões cheios de rimas "pobres". E me ensinava, quase num grito, para abafar o barulho:
- O Camões ruim está muito acima da média da poesia em língua portuguesa.
Ele me falava enquanto o motorista estrondava música no rádio, num brega infernal. Ele não se dava conta do aperto de gente em volta, porque a essa altura fazia uma mesura, com um pedido de desculpa aos parnasianos, que estavam a quilômetros e há quilômetros do coletivo:
- Olavo Bilac tinha razão ao dizer que a rima pode revelar um verso novo, que antes não sabíamos. Eu descobri isso, na prática.
“Os versos brancos não são uma invenção moderna, nem sempre a poesia teve rima”, ele me dizia. Então eu, como um novo Burguês Fidalgo, lhe perguntava: “Então os clássicos antigos faziam poesia sem rima?” (Me dava vontade de perguntar se existia poesia em prosa, mas me calava):
- Olhe. A rima vem da Idade Média, com a grande influência árabe, ele me respondia.
Então ele se levantava para descer do ônibus. Além do fato de ser um falante esquisito, as pessoas não o viam. O poeta não viam. De O Homem Invisível de Wells me lembrava sempre. O poeta é, era o homem invisível. E pensava que essa ignorância caminhava além do círculo de trabalhadores que viajavam no ônibus. Alcançava o próprio poder público, porque o poeta Alberto da Cunha Melo, com mais de 60 anos, recebia a generosidade de governantes que lhe permitiam trabalhar em uma biblioteca pública... menos de dois salários mínimos.
Houve uma vez em que eu, depois de bem observar as cervejas que ele bebia nos bares, convidei-o para a minha casa, para que assistíssemos juntos a um programa de televisão dedicado a Canhoto da Paraíba. Que fiz? Pedi a meu filho que comprasse as marcas de cerveja que eu sabia ser do costume do poeta beber. O grande Alberto se angustiou:
- Por favor, essa daí não. Se puder, mande buscar uma cerveja melhor. Eu bebo a mais barata porque não posso pagar outra!
E no entanto, o poeta era capaz de linhas luminosas como estas:
O PRESENTE
O que hoje recebes
e não podes pegar, guardar
em panos e papéis laminados,
é imperecível,
presente onipresente.
Estás com ele na chuva
e não temes que se desfaça.
Estás com ele na multidão
e não o escondes dos mutilados.
O que não existe para os homens
deles estará protegido,
o que os homens não vêem
não poderão espedaçar.
Eis o que não te denuncia
porque não tem face
nem volume para ser jogado no mar.
Eis o que é jovem a cada lembrança
porque não tem data
e série, para envelhecer.
O que hoje recebes
Não pode ser devolvido.”
Um poeta assim é uma felicidade permanente, mesmo que não esteja mais entre nós, até mesmo entre os terremotos do Japão.
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
O que hoje recebes
e não podes pegar, guardar
em panos e papéis laminados,
é imperecível,
presente onipresente.
Estás com ele na chuva
e não temes que se desfaça.
Estás com ele na multidão
e não o escondes dos mutilados.
O que não existe para os homens
deles estará protegido,
o que os homens não vêem
não poderão espedaçar.
Eis o que não te denuncia
porque não tem face
nem volume para ser jogado no mar.
Eis o que é jovem a cada lembrança
porque não tem data
e série, para envelhecer.
O que hoje recebes
Não pode ser devolvido.”
Um poeta assim é uma felicidade permanente, mesmo que não esteja mais entre nós, até mesmo entre os terremotos do Japão.
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
A minha mãe gostava de literatura, mas não de poemas. Aprendi que não era bom, e por muito tempo pensava que não gostava deles, apenas os musicados, que me tocavam muito. Depois decidi olhar com mais carinho, porém era tarde demais para entendê-los. Hoje, gosto, embora nem sempre entenda esses poetas que brincam de organizar as palavras e seus significados.
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