sábado, 26 de março de 2011


O homem dentro de um cão

* Por Luiz Carlos Monteiro


Composto de 26 narrativas, O homem dentro de um cão (Terceiro Nome, SP), é o segundo livro de contos do jornalista Fernando Portela, sem se considerar as histórias infantis que já publicou. Nas quatro subdivisões deste trabalho, o autor transita em diversos ramos da experiência humana e constrói histórias para todos os gostos, desde literatura policial a descrições de fatos e situações do sabor mais prosaico. Alguns tipos humanos que apresenta removem-se entre o banal e o mirabolante, entre o pirotécnico e o corriqueiro. A personagem Zefinha, de “Na hora marcada”, do bloco inicial, é um bom exemplo disso, ao deixar tensos os moradores da casa onde vive e trabalha, no dia em que anuncia a própria morte para a meia-noite, contudo, no outro dia, logo cedo malograda. O suicídio do velho gringo suíço de “O colecionador de insultos”, bloco segundo, faz com que uma mulher o insulte indiscriminadamente porque ele teria se matado num “prédio cheio de inocentes”. Em “Este convite caiu do céu”, terceiro bloco, Maria do Socorro, a mulher barbada, sai da realidade para a fantasia ou vice-versa, ao aceitar o convite para fazer um número de circo, e recebe total apoio do marido, podendo agora se apresentar para um público muito maior do que o das pessoas conhecidas.

O protagonista inominado do conto “No franzir das culpas”, do primeiro bloco, Uivos no dia-a-dia, tem um acesso de culpa por ter recebido um trabalho que caberia a um antigo amigo, Giacomo Ranieri. Este, por sua vez, era conhecido nas hostes teatrais como delator e aliado dos banqueiros e militares durante a ditadura brasileira. A finalização do texto ensina como a culpa deve ser tratada nos nossos dias: “A culpa não pode ser, assim, como uma fatura eterna que vamos pagando a cada minuto da nossa existência. Para isso existem os psicólogos, os psicanalistas: os bons profissionais nos ensinam a conviver com a culpa. Se não funcionarem, ainda temos os antidepressivos. Os atuais chegam a ser milagrosos”. Neste mesmo bloco, a narrativa “Seja discreta, menina”, toda entre aspas, certamente para não baixar o tom veloz da conversa, mostra o assessor de um deputado tentando convencer uma mulher que tem a beleza como atributo principal, a se casar com o político homossexual para manter as aparências. A certa altura, argumenta: “Sua alternativa é trabalhar feito uma mula, dar pra todo mundo, até conseguir uma fortunazinha de merda. Provavelmente na tevê. Você é linda, mas não tem talento. Então, se não vier o ibope, tchau. Pra modelo mesmo, da moda, você não tem mais idade. Pense bem. Aqui no Brasil, nenhum executivo de multinacional, mesmo com o que possa levar por fora, ganha isso que você vai ganhar. E você só precisa ser discreta. A discrição é o seu dote”. Este trecho do mesmo conto estabelece a denúncia de corrupção política que todo mundo está cansado de ver e ouvir: “Você sabe quantas vidas duplas existem em Brasília? Quantas autoridades, algumas pelas quais você poria sua mãozinha no fogo, têm contas correntes bem gordinhas em paraísos fiscais? A maioria delas fala em corrupção, e defende o Brasil com unhas e dentes”.

Na coletânea, o bloco de maior unidade e coerência textual é o segundo, Hemorragia fashion, que traz narrativas de cunho policial, onde se podem reconhecer, sem muito esforço, sugestões fonsequianas. No texto “Lágrimas vãs por um cadáver romântico”, faz-se exemplar a descrição inicial de um tiro num quadro pendurado na sala de um barraco: “Um dos tiros atingiu o gancho do quadro do Coração de Jesus, pregado na parede da sala do barraco há mais de trinta anos. O quadro desabou e o vidro partiu. A imagem, impressa, perdeu carisma e status, solta no chão: ficou parecendo uma folha de calendário, em meio aos cacos de vidro e pedaços de reboco da parede”.

Numa palavra, para ler Fernando Portela, o leitor tem de se acostumar a conviver com o pitoresco e o grotesco, somados a laivos e erupções do fantástico e do mágico bastantes presentes na prosa latino-americana de décadas passadas. Em certas narrativas, o leitor parece estar vivendo, junto ao contista, o acontecimento que este narra, o que informa sobre a dimensão da verossimilhança e a força da oralidade presente nas histórias de Portela. Seus diálogos ocorrem geralmente entremeados de aspas, resultando, talvez sem que o autor o queira, numa maneira pessoal formal e estilística inesquivável. A atualidade do seu texto é mantida, no entanto, pela grande movimentação dos personagens, pelas situações ocorrentes no espaço virtual e competitivo de agora, pelas conversas em tom aberto e desmedido, e pelo acúmulo de vida que pulsa em suas páginas.

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com

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