Tio Osvaldo e as noites encantadas
* Por Urda Alice Klueger
Eu tive uma infância encantada por tios. Como a minha vida começa a ter sentido e lembranças lá quando eu tinha 3 anos, isso envolve as décadas de 1950/1960. Havia o tio que não era tio mas que era primo, mas que a gente chamava de tio Júlio, e que era vizinho de cerca, e então o tio Júlio fazia parte do dia a dia e não entra nesta história. Também havia outros tios que não eram tios da gente, mas tios dos primos da gente, como o tio Leo, o tio Tedo e o tio Timo, nas cercanias, e eles também não servem aqui. E havia o tio Erich que morava em Blumenau e então nunca dormia na casa da gente, e ele também não vale.
Os tios que quero lembrar aqui eram os tios que apareciam para ficar para o outro dia, para dormir, os que vinham de outra cidade. Eles eram de diversos tipos, e eram fascinantes! Acho que, com o tempo, vou escrever uma crônica para cada um deles, mas hoje, de leve, dou idéia de alguns: a tia Frieda, que vinha de navio da totalmente encantada e maravilhosa cidade do Rio de Janeiro, e que nos trazia coisas inesperadas, como livros de histórias, balas de coco e anáguas da última moda; e o tio Victor, boêmio que chegava de madrugada, de terno branco e chapéu panamá, em hora inusitada para a nossa mentalidade de colonos que continuam a achar que havia que se levantar antes que o sol – embora, desde que eu nasci no centro da cidade de Blumenau, já fazia anos que os meus pais não tinham mais vacas para cuidar ao alvorecer – e para todos minha mãe fazia uma cama de visita, normalmente no chão da sala, desencantando suas melhores cobertas, colchões e lençóis de cretone branco, além dos grandes travesseiros de pena com capas de cambraia com entremeio de crochê fino.
O tio que levava a palma, porém, sem dúvida, era o tio Osvaldo de Souza – porque também houvera um tio Oswaldo Klueger, que eu não chegara a conhecer, já que partira para outras plagas antes que eu nascesse, levado por angústias de amor, mas que mesmo assim era bem presente nas nossas vidas.
O tio Osvaldo de Souza, no entanto, era um tio que nunca deixava de aparecer, e vinha de tardinha, miúdo e ágil, que é como me lembro dele, sempre carregando algumas gaiolas e um fascínio inigualável! Meu pai e ele eram cunhados, mas a impressão que tenho, mesmo tanto tempo depois, é que se gostavam muito! Ele era o irmão preferido da minha mãe – mais velho que ela, viera para Blumenau tempos antes, mas sempre voltara à terra natal para ver a irmãzinha, e lhe levava de presente coisas que uma menina não poderia jamais esquecer: latinhas de pó de arroz, espelhinhos, coisas preciosas nos tempos mais antigos, quando ainda se vivia na roça e havia dificuldade de acesso aos supérfluos.
A chegada do tio Osvaldo era certeza de uma noite divertida, sem hora para ir dormir, com muitas histórias maravilhosas e engraçadas para se lembrar depois. Ele sempre vinha de longe: morava na então distante cidade de Lages/SC, nos tempos em que ainda não havia sequer uma estrada asfaltada no meu Estado, e aqueles quase 300 quilômetros de poeira ou lama eram uma viagem e tanto! Estava sempre de passagem: normalmente, ia ao médico, em Florianópolis (mais 150 quilômetros sem asfalto!), com parada em Tijucas, para fazer visitas. Pensando agora, vejo que ele tinha só uns 35 anos quando eu nasci – assim, conheci um tio Osvaldo ainda moço, pronto para todas as aventuras e sonhos, e acho que o maior deles, naquela altura, era o de fazer as sobrinhas rirem! Ele chegava, achava lugar para suas gaiolas com passarinhos, cuidava deles antes que escurecesse, e quando se sentava à mesa para o prato de sopa (pois naquele tempo, como em Portugal ainda hoje, tomava-se sopa antes das refeições), o divertimento já estava assegurado! Quantas, quantas histórias o tio Osvaldo tinha sempre para contar! Sem dúvida as mais engraçadas e hilariantes eram as do Pedro Malazarte, fantástico personagem que conheci através do meu tio, sem ter idéia que era alguém que o país inteiro conhecia! Penso que sou capaz de lembrar de dúzias de histórias do Pedro Malazarte que ele contava, apimentadas e engraçadas, cheias das mais diversas safadezas, e que faziam meninas pequenas rolarem de rir! A gente ria tanto, mas tanto, que em algum momento acabava dormindo de pura exaustão, naqueles especiais noites que, como nas noites de Natal, não havia horário para ir para a cama!
Tio Osvaldo também contava outras histórias, como a do seu grande sonho de voltar a morar em Tijucas, onde tinha nascido e vivido os seus primeiros anos, sonho que ele alimentou a vida inteirinha, até seus últimos dias. Um outro sonho era comer peixe, muito peixe, como seria possível se ele viesse morar cá na “Serra Abaixo”, conforme ele denominava o Litoral e o Vale – e Tijucas era tão perto do mar!
Disse acima que ele ia ao médico em Florianópolis, e ia lá para fazer exames mais apurados, pois sonhava com uma aposentadoria que naquele tempo, no país, ainda era coisa quase que só para sonho. Então como ele ria, quando contava como ludibriava o médico, falando da dor que sentia nas costas! O médico mandava fazer Raio-X, uma coisa moderníssima, e não achava nada errado.
- Não tem Raio-X que possa mostrar uma dor! – ele ria muito, decerto pensando nas safadezas do Pedro Malazarte, já que ele não tinha dor nenhuma. E então ele saía mancando e imitando os gestos que fazia diante do médico, que não sabia o que fazer com aquela dor indetectável. Já que o médico não achava a dor mesmo, o tio Osvaldo acabou aposentado, como queria, o que foi uma alegria para todos nós.
Eu tinha 4 anos quando fomos morar na Praia de Camboriú, que naquela época, junto com a Vila, formava um município só e, portanto, penso que a aposentadoria do tio Osvaldo saiu quando a gente já morava em Camboriú.
Ter conseguido a aposentadoria, porém, não o impediu de continuar a viajar Serra Abaixo, para visitar a nós e a uma porção de gente, sempre com suas gaiolas, sempre querendo se mudar para Tijucas, sempre querendo comer peixe, sempre com o charme das suas histórias engraçadas. Lá em Camboriú havia muito peixe – ele deve ter comido muito lá, já não me lembro!
Depois, a vida seguiu, nos crescemos, o tio Osvaldo envelheceu. Eu o vi a última vez faz mais de dez anos, quando meu primo Cláudio o trouxe a Blumenau para um encontro com a minha mãe. Fomos todos almoçar num bonito restaurante turístico, e tio Osvaldo estava mais miúdo e magrinho do que eu me lembrava, mas foi taxativo na hora de fazer o pedido:
- Quero peixe!
O garçom engravatado ficou meio sem saber o que fazer, já que aquele era um restaurante especializado em coisas como Einsbein e Kassler. Acabou arranjando fino filé de linguado à milanesa, e o tio Osvaldo não queria se conformar: ele descera a serra para comer uma sardinha frita, ou um charutinho frito com um pirão d’água, assim como mandava a saudade da sua infância – será que o mundo da sua infância se perdera?
No começo deste ano o meu primo Cláudio me enviou, via Internet, uma foto recente do tio Osvaldo. Antes que a minha mãe visse a foto, eu contei a ela:
- Ele está igualzinho à mãe, caso a mãe não tivesse se penteado!
Quando ela viu a foto, concordou comigo.
Preparávamo-nos para ir lá visitá-lo quando chegou a notícia que a gente não queria: o tio Osvaldo tinha tomado outros rumos. Foi bem triste para mim. Era como perder um pedaço da infância. O que me consola é que, decerto, lá do outro lado, Pedro Malazarte estava a esperá-lo, e os dois partiram para alguma grande pândega, como ele sempre sonhou! Boa viagem, tio Osvaldo!
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR
* Por Urda Alice Klueger
Eu tive uma infância encantada por tios. Como a minha vida começa a ter sentido e lembranças lá quando eu tinha 3 anos, isso envolve as décadas de 1950/1960. Havia o tio que não era tio mas que era primo, mas que a gente chamava de tio Júlio, e que era vizinho de cerca, e então o tio Júlio fazia parte do dia a dia e não entra nesta história. Também havia outros tios que não eram tios da gente, mas tios dos primos da gente, como o tio Leo, o tio Tedo e o tio Timo, nas cercanias, e eles também não servem aqui. E havia o tio Erich que morava em Blumenau e então nunca dormia na casa da gente, e ele também não vale.
Os tios que quero lembrar aqui eram os tios que apareciam para ficar para o outro dia, para dormir, os que vinham de outra cidade. Eles eram de diversos tipos, e eram fascinantes! Acho que, com o tempo, vou escrever uma crônica para cada um deles, mas hoje, de leve, dou idéia de alguns: a tia Frieda, que vinha de navio da totalmente encantada e maravilhosa cidade do Rio de Janeiro, e que nos trazia coisas inesperadas, como livros de histórias, balas de coco e anáguas da última moda; e o tio Victor, boêmio que chegava de madrugada, de terno branco e chapéu panamá, em hora inusitada para a nossa mentalidade de colonos que continuam a achar que havia que se levantar antes que o sol – embora, desde que eu nasci no centro da cidade de Blumenau, já fazia anos que os meus pais não tinham mais vacas para cuidar ao alvorecer – e para todos minha mãe fazia uma cama de visita, normalmente no chão da sala, desencantando suas melhores cobertas, colchões e lençóis de cretone branco, além dos grandes travesseiros de pena com capas de cambraia com entremeio de crochê fino.
O tio que levava a palma, porém, sem dúvida, era o tio Osvaldo de Souza – porque também houvera um tio Oswaldo Klueger, que eu não chegara a conhecer, já que partira para outras plagas antes que eu nascesse, levado por angústias de amor, mas que mesmo assim era bem presente nas nossas vidas.
O tio Osvaldo de Souza, no entanto, era um tio que nunca deixava de aparecer, e vinha de tardinha, miúdo e ágil, que é como me lembro dele, sempre carregando algumas gaiolas e um fascínio inigualável! Meu pai e ele eram cunhados, mas a impressão que tenho, mesmo tanto tempo depois, é que se gostavam muito! Ele era o irmão preferido da minha mãe – mais velho que ela, viera para Blumenau tempos antes, mas sempre voltara à terra natal para ver a irmãzinha, e lhe levava de presente coisas que uma menina não poderia jamais esquecer: latinhas de pó de arroz, espelhinhos, coisas preciosas nos tempos mais antigos, quando ainda se vivia na roça e havia dificuldade de acesso aos supérfluos.
A chegada do tio Osvaldo era certeza de uma noite divertida, sem hora para ir dormir, com muitas histórias maravilhosas e engraçadas para se lembrar depois. Ele sempre vinha de longe: morava na então distante cidade de Lages/SC, nos tempos em que ainda não havia sequer uma estrada asfaltada no meu Estado, e aqueles quase 300 quilômetros de poeira ou lama eram uma viagem e tanto! Estava sempre de passagem: normalmente, ia ao médico, em Florianópolis (mais 150 quilômetros sem asfalto!), com parada em Tijucas, para fazer visitas. Pensando agora, vejo que ele tinha só uns 35 anos quando eu nasci – assim, conheci um tio Osvaldo ainda moço, pronto para todas as aventuras e sonhos, e acho que o maior deles, naquela altura, era o de fazer as sobrinhas rirem! Ele chegava, achava lugar para suas gaiolas com passarinhos, cuidava deles antes que escurecesse, e quando se sentava à mesa para o prato de sopa (pois naquele tempo, como em Portugal ainda hoje, tomava-se sopa antes das refeições), o divertimento já estava assegurado! Quantas, quantas histórias o tio Osvaldo tinha sempre para contar! Sem dúvida as mais engraçadas e hilariantes eram as do Pedro Malazarte, fantástico personagem que conheci através do meu tio, sem ter idéia que era alguém que o país inteiro conhecia! Penso que sou capaz de lembrar de dúzias de histórias do Pedro Malazarte que ele contava, apimentadas e engraçadas, cheias das mais diversas safadezas, e que faziam meninas pequenas rolarem de rir! A gente ria tanto, mas tanto, que em algum momento acabava dormindo de pura exaustão, naqueles especiais noites que, como nas noites de Natal, não havia horário para ir para a cama!
Tio Osvaldo também contava outras histórias, como a do seu grande sonho de voltar a morar em Tijucas, onde tinha nascido e vivido os seus primeiros anos, sonho que ele alimentou a vida inteirinha, até seus últimos dias. Um outro sonho era comer peixe, muito peixe, como seria possível se ele viesse morar cá na “Serra Abaixo”, conforme ele denominava o Litoral e o Vale – e Tijucas era tão perto do mar!
Disse acima que ele ia ao médico em Florianópolis, e ia lá para fazer exames mais apurados, pois sonhava com uma aposentadoria que naquele tempo, no país, ainda era coisa quase que só para sonho. Então como ele ria, quando contava como ludibriava o médico, falando da dor que sentia nas costas! O médico mandava fazer Raio-X, uma coisa moderníssima, e não achava nada errado.
- Não tem Raio-X que possa mostrar uma dor! – ele ria muito, decerto pensando nas safadezas do Pedro Malazarte, já que ele não tinha dor nenhuma. E então ele saía mancando e imitando os gestos que fazia diante do médico, que não sabia o que fazer com aquela dor indetectável. Já que o médico não achava a dor mesmo, o tio Osvaldo acabou aposentado, como queria, o que foi uma alegria para todos nós.
Eu tinha 4 anos quando fomos morar na Praia de Camboriú, que naquela época, junto com a Vila, formava um município só e, portanto, penso que a aposentadoria do tio Osvaldo saiu quando a gente já morava em Camboriú.
Ter conseguido a aposentadoria, porém, não o impediu de continuar a viajar Serra Abaixo, para visitar a nós e a uma porção de gente, sempre com suas gaiolas, sempre querendo se mudar para Tijucas, sempre querendo comer peixe, sempre com o charme das suas histórias engraçadas. Lá em Camboriú havia muito peixe – ele deve ter comido muito lá, já não me lembro!
Depois, a vida seguiu, nos crescemos, o tio Osvaldo envelheceu. Eu o vi a última vez faz mais de dez anos, quando meu primo Cláudio o trouxe a Blumenau para um encontro com a minha mãe. Fomos todos almoçar num bonito restaurante turístico, e tio Osvaldo estava mais miúdo e magrinho do que eu me lembrava, mas foi taxativo na hora de fazer o pedido:
- Quero peixe!
O garçom engravatado ficou meio sem saber o que fazer, já que aquele era um restaurante especializado em coisas como Einsbein e Kassler. Acabou arranjando fino filé de linguado à milanesa, e o tio Osvaldo não queria se conformar: ele descera a serra para comer uma sardinha frita, ou um charutinho frito com um pirão d’água, assim como mandava a saudade da sua infância – será que o mundo da sua infância se perdera?
No começo deste ano o meu primo Cláudio me enviou, via Internet, uma foto recente do tio Osvaldo. Antes que a minha mãe visse a foto, eu contei a ela:
- Ele está igualzinho à mãe, caso a mãe não tivesse se penteado!
Quando ela viu a foto, concordou comigo.
Preparávamo-nos para ir lá visitá-lo quando chegou a notícia que a gente não queria: o tio Osvaldo tinha tomado outros rumos. Foi bem triste para mim. Era como perder um pedaço da infância. O que me consola é que, decerto, lá do outro lado, Pedro Malazarte estava a esperá-lo, e os dois partiram para alguma grande pândega, como ele sempre sonhou! Boa viagem, tio Osvaldo!
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR
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