Manufaturamos realidades
O genial escritor português Fernando Pessoa escreveu, em um de seus tantos e tantos textos que, amiúde, “manufaturamos realidades”. “Mas como?”, perguntará, atônito, o leitor, achando que se trata, meramente, de frase de efeito do poeta dos heterônimos. “A realidade não é uma só para todos?”. Creiam-me, não é. O tema é um tanto complexo, mas vou tentar explicar com o máximo de clareza e objetividade que meu estilo e minha capacidade de expressão permitam.
O que chamamos de “realidade”, nem sempre é geral e muito menos consensual. E, raramente, é aleatório. Ou seja, dificilmente ocorre por acaso. Quase sempre tem nossa interferência pessoal, quer por ação, quer por omissão e é conseqüência de nossa forma de ser e de reagir diante de determinado fato ou acontecimento. O que é realidade para mim, não o é para bilhões de pessoas ao redor do mundo e vice-versa. Elas não vivem a mesma circunstância que vivo e não raro sequer tomam ciência do que para mim é tão importante (e, às vezes, decisivo) e para elas, óbvio, não é.
Tomemos por exemplo o início da primeira guerra do Golfo Pérsico, deflagrada com o maciço ataque aéreo norte-americano a Bagdá, se não me falha a memória em 19 de janeiro de 1992, tendo por pretexto para essa ação militar belicosa a expulsão das tropas iraquianas que haviam invadido o reino do Kuwait. Foi o primeiro conflito armado cujo início foi transmitido praticamente “ao vivo” pela televisão para boa parte do mundo. O mesmo fato, porém, ensejou uma série de “realidades” diferentes, derivadas de uma “realidade geral”, que foi o tal bombardeio.
Para os pilotos das moderníssimas aeronaves, inclusive dos Steahealths – os tais aviões “invisíveis” aos radares – ela foi uma. A mesma, talvez, dos artilheiros que, de alto mar, de bordo de modernas belonaves, disparavam potentíssimos e ultracerteiros mísseis ditos “inteligentes”. Consistia no cumprimento de determinada missão, que lhes fora atribuída pela cúpula militar do Pentágono e ordenada, por seu turno, por George Bush (o pai), então presidente dos EUA. A ordem era clara e peremptória: destruir todos os meios de defesa do “inimigo”, mas com o mínimo de perdas (se possível, nenhuma) para os atacantes. Já a realidade dos defensores da cidade era a de tentarem abater o máximo possível de aeronaves inimigas e não serem atingidos pelos bem-armados agressores. E qual era a da população civil? Era a mesma dos atacantes e dos defensores? Não, não e não! Era trágica! Era impotente. Era de extrema vulnerabilidade.
Homens, mulheres e crianças, os indefesos moradores da cidade, eram as verdadeiras vítimas (diria únicas) do conflito, que não provocaram, certamente desaprovaram e com cujas conseqüências tinham que arcar quase que sozinhos. Embora a imprensa (desgraçadamente parcialíssima também nesse caso), não registrasse (nunca registrou), o número de mortos e feridos entre os residentes de Bagdá, este foi infinitamente maior do que o dos protagonistas do desigual confronto militar. Isso sem falar dos prejuízos materiais que recaíram, todos, sobre os ombros da população civil (a que sobreviveu, é obvio).
Recordo-me que, na época, eu era editor de Política Internacional do Correio Popular de Campinas e cabia-me a tarefa, portanto, de noticiar, com a maior clareza, objetividade e isenção o ataque (como se com os meios que tinha ao meu dispor isso fosse possível). Para adiantar o serviço, sem depender dos despachos das agências noticiosas internacionais, postei-me, atento, diante de um aparelho de televisão na redação do jornal para captar o máximo de dados e impressões e reproduzi-los em texto.
Ao meu lado, vários funcionários de diversos setores da empresa acompanhavam a transmissão do ataque, que mais parecia um jogo de videogame do que guerra real. Um deles chegou a exclamar, embasbacado, maravilhado, embevecido: “Que maravilha!”. Isso chocou-me profundamente. Como maravilha?!!!, cara pálida! O indivíduo não se dava conta que aquelas explosões, que formavam arabescos de luz, tragicamente belos, como figuras de um gigantesco calidoscópio, estavam matando anciões, mulheres e crianças em profusão, que nada, absolutamente nada tinham a ver com a guerra e não tinham como fugir de balas e bombas.
Fiz essa observação ao tal indivíduo, que retrucou: “Eles merecem! Afinal, apóiam um ditador como Saddam Hussein”. Ou seja, as vítimas foram classificadas como agressoras ou coniventes com um suposto agressor, no caso o líder iraquiano, na mente daquela pessoa relativamente bem-informada (e de bilhões mundo afora, incapazes de raciocinar, com um mínimo de objetividade, por si sós) . A realidade “geral” era uma só: os bombardeios. Suas “interpretações”, inclusive a do alienado telespectador ao meu lado, é que não eram iguais. Muito pelo contrário. Se o vilão era Saddam, por que punir tão pesadamente suas verdadeiras vítimas? Por que atacar casas, ruas, vilas etc. que abrigavam apenas inocentes? Comentaristas, jornalistas de todas as funções e cientistas políticos redobraram esforços para tentar justificar o injustificável. Fizeram, no final das contas, do agressor o grande “herói” da questão, louvado em verso e prosa. Já as vítimas... Todavia, não convenceram. Não, pelo menos, os que raciocinam com lógica e racionalidade.
Esse caso foi, pois, a típica “manufatura de realidades”. E não apenas duas ou três, mas diversas, várias, quiçá infinitas. E estas eram (como soem ser sempre) multivariadas (na interpretação e nos efeitos). A não ser que ocorra uma catástrofe planetária, como o choque de um cometa ou de um asteróide com a Terra, minha “realidade” será sempre limitada ao espaço em que eu estiver. Afinal, uma coisa é ser vítima dela e outra, mero espectador.
Essa mesma realidade pode (ou não) ser, também, a de várias outras pessoas, atingidas pelo mesmo fato. Mas não será a de “todos” os habitantes do Planeta. É o caso do recente terremoto, seguido de devastador tsunami, no Japão. Portanto, o que é real para mim, pode não passar de fantasia, de um “jogo de videogame” para tantos outros e vice-versa. Por isso, concordo e avalizo a constatação de Fernando Pessoa: “Manufaturamos realidades”. E a todo o instante.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
O genial escritor português Fernando Pessoa escreveu, em um de seus tantos e tantos textos que, amiúde, “manufaturamos realidades”. “Mas como?”, perguntará, atônito, o leitor, achando que se trata, meramente, de frase de efeito do poeta dos heterônimos. “A realidade não é uma só para todos?”. Creiam-me, não é. O tema é um tanto complexo, mas vou tentar explicar com o máximo de clareza e objetividade que meu estilo e minha capacidade de expressão permitam.
O que chamamos de “realidade”, nem sempre é geral e muito menos consensual. E, raramente, é aleatório. Ou seja, dificilmente ocorre por acaso. Quase sempre tem nossa interferência pessoal, quer por ação, quer por omissão e é conseqüência de nossa forma de ser e de reagir diante de determinado fato ou acontecimento. O que é realidade para mim, não o é para bilhões de pessoas ao redor do mundo e vice-versa. Elas não vivem a mesma circunstância que vivo e não raro sequer tomam ciência do que para mim é tão importante (e, às vezes, decisivo) e para elas, óbvio, não é.
Tomemos por exemplo o início da primeira guerra do Golfo Pérsico, deflagrada com o maciço ataque aéreo norte-americano a Bagdá, se não me falha a memória em 19 de janeiro de 1992, tendo por pretexto para essa ação militar belicosa a expulsão das tropas iraquianas que haviam invadido o reino do Kuwait. Foi o primeiro conflito armado cujo início foi transmitido praticamente “ao vivo” pela televisão para boa parte do mundo. O mesmo fato, porém, ensejou uma série de “realidades” diferentes, derivadas de uma “realidade geral”, que foi o tal bombardeio.
Para os pilotos das moderníssimas aeronaves, inclusive dos Steahealths – os tais aviões “invisíveis” aos radares – ela foi uma. A mesma, talvez, dos artilheiros que, de alto mar, de bordo de modernas belonaves, disparavam potentíssimos e ultracerteiros mísseis ditos “inteligentes”. Consistia no cumprimento de determinada missão, que lhes fora atribuída pela cúpula militar do Pentágono e ordenada, por seu turno, por George Bush (o pai), então presidente dos EUA. A ordem era clara e peremptória: destruir todos os meios de defesa do “inimigo”, mas com o mínimo de perdas (se possível, nenhuma) para os atacantes. Já a realidade dos defensores da cidade era a de tentarem abater o máximo possível de aeronaves inimigas e não serem atingidos pelos bem-armados agressores. E qual era a da população civil? Era a mesma dos atacantes e dos defensores? Não, não e não! Era trágica! Era impotente. Era de extrema vulnerabilidade.
Homens, mulheres e crianças, os indefesos moradores da cidade, eram as verdadeiras vítimas (diria únicas) do conflito, que não provocaram, certamente desaprovaram e com cujas conseqüências tinham que arcar quase que sozinhos. Embora a imprensa (desgraçadamente parcialíssima também nesse caso), não registrasse (nunca registrou), o número de mortos e feridos entre os residentes de Bagdá, este foi infinitamente maior do que o dos protagonistas do desigual confronto militar. Isso sem falar dos prejuízos materiais que recaíram, todos, sobre os ombros da população civil (a que sobreviveu, é obvio).
Recordo-me que, na época, eu era editor de Política Internacional do Correio Popular de Campinas e cabia-me a tarefa, portanto, de noticiar, com a maior clareza, objetividade e isenção o ataque (como se com os meios que tinha ao meu dispor isso fosse possível). Para adiantar o serviço, sem depender dos despachos das agências noticiosas internacionais, postei-me, atento, diante de um aparelho de televisão na redação do jornal para captar o máximo de dados e impressões e reproduzi-los em texto.
Ao meu lado, vários funcionários de diversos setores da empresa acompanhavam a transmissão do ataque, que mais parecia um jogo de videogame do que guerra real. Um deles chegou a exclamar, embasbacado, maravilhado, embevecido: “Que maravilha!”. Isso chocou-me profundamente. Como maravilha?!!!, cara pálida! O indivíduo não se dava conta que aquelas explosões, que formavam arabescos de luz, tragicamente belos, como figuras de um gigantesco calidoscópio, estavam matando anciões, mulheres e crianças em profusão, que nada, absolutamente nada tinham a ver com a guerra e não tinham como fugir de balas e bombas.
Fiz essa observação ao tal indivíduo, que retrucou: “Eles merecem! Afinal, apóiam um ditador como Saddam Hussein”. Ou seja, as vítimas foram classificadas como agressoras ou coniventes com um suposto agressor, no caso o líder iraquiano, na mente daquela pessoa relativamente bem-informada (e de bilhões mundo afora, incapazes de raciocinar, com um mínimo de objetividade, por si sós) . A realidade “geral” era uma só: os bombardeios. Suas “interpretações”, inclusive a do alienado telespectador ao meu lado, é que não eram iguais. Muito pelo contrário. Se o vilão era Saddam, por que punir tão pesadamente suas verdadeiras vítimas? Por que atacar casas, ruas, vilas etc. que abrigavam apenas inocentes? Comentaristas, jornalistas de todas as funções e cientistas políticos redobraram esforços para tentar justificar o injustificável. Fizeram, no final das contas, do agressor o grande “herói” da questão, louvado em verso e prosa. Já as vítimas... Todavia, não convenceram. Não, pelo menos, os que raciocinam com lógica e racionalidade.
Esse caso foi, pois, a típica “manufatura de realidades”. E não apenas duas ou três, mas diversas, várias, quiçá infinitas. E estas eram (como soem ser sempre) multivariadas (na interpretação e nos efeitos). A não ser que ocorra uma catástrofe planetária, como o choque de um cometa ou de um asteróide com a Terra, minha “realidade” será sempre limitada ao espaço em que eu estiver. Afinal, uma coisa é ser vítima dela e outra, mero espectador.
Essa mesma realidade pode (ou não) ser, também, a de várias outras pessoas, atingidas pelo mesmo fato. Mas não será a de “todos” os habitantes do Planeta. É o caso do recente terremoto, seguido de devastador tsunami, no Japão. Portanto, o que é real para mim, pode não passar de fantasia, de um “jogo de videogame” para tantos outros e vice-versa. Por isso, concordo e avalizo a constatação de Fernando Pessoa: “Manufaturamos realidades”. E a todo o instante.
Boa leitura.
O Editor.
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Nos casos citados as realidades seriam na verdade pontos de vista. As imagens verde-amareladas pareciam uma brincadeira. A propaganda americana dizia que as bombas tinham uma precisão cirúrgica. Isso fazia a opinião pública mundial acreditar numa guerra sem sangue. Podemos acreditar na realidade que mais nos convier. Somos uns tolos manipulados pela força do que se pode chamar de mídia ou de imprensa. No final, nós, os pseudointeligentes e informados acreditamos não no que devemos, mas no que querem que acreditemos.
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