Colecionei geleiras vida afora
* Por Eduardo Murta
Vi, juro que vi, e até toquei-lhe o braço magro, a confirmar se era real. Resvalei veladamente as dobras cansadas, uma coleção de pintas tomando a pele macerada. Traduziam o verniz de décadas. Ancorei à mesa ao lado e de lá dei de observar, recluso. Óculos largos, aros do tempo de avô, os olhos num cristalino que ia e vinha à porta da esquerda, como esperasse alguém havia horas. Dissimulei, porque cedo me notaria intruso. Mas era ele mesmo. Seguro. O nariz, a curva do queixo. Todos os traços estavam lá.
Me retraio, sentindo eu agora o exame minucioso dele sobre minhas mãos temperadas a graxa, meu uniforme azul, num padrão que rompera a serra do século. Vejo que me olha com simpatia, um meio naco de compaixão. Talvez lhe soe de algum modo comovente meu boné de maquinista. Compreendo a reverência, o saúdo. Mas ficamos nas mesmas posições. Em estudo mútuo. Daí os gestos pontuais como os de uma casa de relojoeiro. No tiquetaque infértil, sem que os movimentos revelassem interesse.
E eu cá trazendo um milhão de razões para que tomasse a iniciativa do contato. Porque ele me houvera feito transitar em caminhos de peculiar e sutil arrebatamento. Destes que eram puro olhar novo sobre o mundo. Àquilo eu era grato, mas por que ele haveria de levar a sério um ferroviário que se apresentava letrado e, mais que isso, versado em poesia? Relutei. Esperei os lances seguintes e, vigiando o garçom, notei que lhe servia gim-tônica. Combinada com.... com broa de fubá?!?!?! Valei-me!!! Estava lá o argumento que, desprezada a conta da esquisitice, me guiaria a ele.
“Ainda há de existir alguém por estas bandas que faça broas como minha mãe”, provoquei. Era uma intervenção banal. Temi que a ele soasse ridícula. Mas reagiu como quem já esperasse o sinal. Mastigou, sereno, o restante e alimentou mais a aproximação. Vislumbrei à pele fininha o caminho das veias mapeando a face, enquanto ele replicava: “Duvido”. O gim foi degustado em seguida. Um minuto, e já estava a seu lado. Ainda a tempo de sentir o buquê da bebida.
Pediu que lhe contasse o segredo da receita de família. Emplumei, orgulhoso, encerei a garganta para emendar a conversa, mas logo me dei conta. Provara tantas vezes, ouvira tantos casos com minha mãe à beira do fogão, transformando a massa a cada movimento... E sabia eu um nada da temperança que me arrebatara já de calções curtos. Era minha ruína. A centímetros do poeta e gessado pela ignorância sobre como preparar uma reles broa de fubá. Me perguntasse do modernismo, do concretismo, da natureza dos sonetos, do amor de Romeu e Julieta, e estaria ali, na ponta da língua.
Mas um simples derivado de milho me pôr ao chão!?!?! A fala foi me fugindo, e lá estava o rosto dele, em ansiedade menina. Ensaiei um recuo, retardei, dobrando e redobrando meu boné de maquinista. No dilema, flagrei a boca secando. Pensei no gosto soberano do que mamãe preparara por anos a fio e, só ali, numa pergunta com sinceridade simplória, o acanhamento de desconhecer me desnudava. Ruminei, vi saída nobre. A velha tática de reagir a uma pergunta incômoda com outra indagação.
“Só conto se você fizer uma revelação”, desafiei, em blefe. Ele mirou a mim longo, deixou que a caneta passeasse entre os dedos, recolheu o guardanapo em que escrevia com letrinhas miúdas uma nova poesia e deu corda: “Vá em frente”. Pensei em como lustrar as palavras, para não constrangê-lo, mas notei que não haveria forma mais direta: “Me conte o que é a tal pedra no meio do caminho que o assombra naquele poema”. Fiz a provocação e recostei. Receio de tê-lo ofendido. Qual nada. Drummond sorriu, como agradecido.
“Ela não é estorvo bruto, nem empecilho”, tentou resumir. Eu embaralhando ainda mais a cabeça, fingindo interesse na graxa negra que dava contorno às unhas. “Mais que isso, ela é falta”, emendou. “Mal comparando, é como notar, cedo ou tarde, que passamos parte da vida nos apegando a uma coleção de geleiras inúteis, e, por paradoxal, é a sensação de ausência o que nos desperta.” Me recompus. E ele devolveu: “Agora é sua vez”.
Refugiei o olhar nas portas de saída, e foi como uma bênção... Vi adentrar, pela esquerda, ela. O lenço fazendo moldura aos cabelos. O tabuleiro sustentado no braço esquerdo. E antes que eu a chamasse, Drummond, freguês cativo sem que eu jamais o soubesse, a saudou pelo nome: “Dora, conta a esse menino o segredo de suas mãos”. Minha mãe sorriu, as estendeu a mim, e eu deixei que entrelaçassem em meus dedos até o encaixe absoluto. Desses que, com sopro despretensioso de estação nova, varrem folhas levemente, feito fossem um balé sem ensaio, um verso de rimas simples.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
Vi, juro que vi, e até toquei-lhe o braço magro, a confirmar se era real. Resvalei veladamente as dobras cansadas, uma coleção de pintas tomando a pele macerada. Traduziam o verniz de décadas. Ancorei à mesa ao lado e de lá dei de observar, recluso. Óculos largos, aros do tempo de avô, os olhos num cristalino que ia e vinha à porta da esquerda, como esperasse alguém havia horas. Dissimulei, porque cedo me notaria intruso. Mas era ele mesmo. Seguro. O nariz, a curva do queixo. Todos os traços estavam lá.
Me retraio, sentindo eu agora o exame minucioso dele sobre minhas mãos temperadas a graxa, meu uniforme azul, num padrão que rompera a serra do século. Vejo que me olha com simpatia, um meio naco de compaixão. Talvez lhe soe de algum modo comovente meu boné de maquinista. Compreendo a reverência, o saúdo. Mas ficamos nas mesmas posições. Em estudo mútuo. Daí os gestos pontuais como os de uma casa de relojoeiro. No tiquetaque infértil, sem que os movimentos revelassem interesse.
E eu cá trazendo um milhão de razões para que tomasse a iniciativa do contato. Porque ele me houvera feito transitar em caminhos de peculiar e sutil arrebatamento. Destes que eram puro olhar novo sobre o mundo. Àquilo eu era grato, mas por que ele haveria de levar a sério um ferroviário que se apresentava letrado e, mais que isso, versado em poesia? Relutei. Esperei os lances seguintes e, vigiando o garçom, notei que lhe servia gim-tônica. Combinada com.... com broa de fubá?!?!?! Valei-me!!! Estava lá o argumento que, desprezada a conta da esquisitice, me guiaria a ele.
“Ainda há de existir alguém por estas bandas que faça broas como minha mãe”, provoquei. Era uma intervenção banal. Temi que a ele soasse ridícula. Mas reagiu como quem já esperasse o sinal. Mastigou, sereno, o restante e alimentou mais a aproximação. Vislumbrei à pele fininha o caminho das veias mapeando a face, enquanto ele replicava: “Duvido”. O gim foi degustado em seguida. Um minuto, e já estava a seu lado. Ainda a tempo de sentir o buquê da bebida.
Pediu que lhe contasse o segredo da receita de família. Emplumei, orgulhoso, encerei a garganta para emendar a conversa, mas logo me dei conta. Provara tantas vezes, ouvira tantos casos com minha mãe à beira do fogão, transformando a massa a cada movimento... E sabia eu um nada da temperança que me arrebatara já de calções curtos. Era minha ruína. A centímetros do poeta e gessado pela ignorância sobre como preparar uma reles broa de fubá. Me perguntasse do modernismo, do concretismo, da natureza dos sonetos, do amor de Romeu e Julieta, e estaria ali, na ponta da língua.
Mas um simples derivado de milho me pôr ao chão!?!?! A fala foi me fugindo, e lá estava o rosto dele, em ansiedade menina. Ensaiei um recuo, retardei, dobrando e redobrando meu boné de maquinista. No dilema, flagrei a boca secando. Pensei no gosto soberano do que mamãe preparara por anos a fio e, só ali, numa pergunta com sinceridade simplória, o acanhamento de desconhecer me desnudava. Ruminei, vi saída nobre. A velha tática de reagir a uma pergunta incômoda com outra indagação.
“Só conto se você fizer uma revelação”, desafiei, em blefe. Ele mirou a mim longo, deixou que a caneta passeasse entre os dedos, recolheu o guardanapo em que escrevia com letrinhas miúdas uma nova poesia e deu corda: “Vá em frente”. Pensei em como lustrar as palavras, para não constrangê-lo, mas notei que não haveria forma mais direta: “Me conte o que é a tal pedra no meio do caminho que o assombra naquele poema”. Fiz a provocação e recostei. Receio de tê-lo ofendido. Qual nada. Drummond sorriu, como agradecido.
“Ela não é estorvo bruto, nem empecilho”, tentou resumir. Eu embaralhando ainda mais a cabeça, fingindo interesse na graxa negra que dava contorno às unhas. “Mais que isso, ela é falta”, emendou. “Mal comparando, é como notar, cedo ou tarde, que passamos parte da vida nos apegando a uma coleção de geleiras inúteis, e, por paradoxal, é a sensação de ausência o que nos desperta.” Me recompus. E ele devolveu: “Agora é sua vez”.
Refugiei o olhar nas portas de saída, e foi como uma bênção... Vi adentrar, pela esquerda, ela. O lenço fazendo moldura aos cabelos. O tabuleiro sustentado no braço esquerdo. E antes que eu a chamasse, Drummond, freguês cativo sem que eu jamais o soubesse, a saudou pelo nome: “Dora, conta a esse menino o segredo de suas mãos”. Minha mãe sorriu, as estendeu a mim, e eu deixei que entrelaçassem em meus dedos até o encaixe absoluto. Desses que, com sopro despretensioso de estação nova, varrem folhas levemente, feito fossem um balé sem ensaio, um verso de rimas simples.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
Um encontro mágico...
ResponderExcluirLindo texto.
Abraços
Ambos mineiros, poderiam ter se encontrado sim, em Belo Horizonte. E se não, a ficção em prosa ficou do tamanho do poeta. Ambos mineiros.
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