quarta-feira, 30 de março de 2011



Aquele romance que nunca

foi e jamais poderia ter sido


* Por Mara Narciso


O casal de canários, após duas semanas, vê o primeiro filhote bicar a casca do ovo. Sai úmido, frágil, mas pouco depois se apruma, levanta o pescocinho, enquanto seu irmão também vem ao mundo. É um grande dia no ninho. A frenética busca por alimentos começa. Ora vai um, ora vai o outro catar insetos para os esfomeados bichinhos.

O casal de gente acaba de se conhecer. A moça sabe o que quer: companhia masculina, um amigo para socializar as coisas boas e ruins da vida, alguém para compartilhar o dia a dia, um companheiro para fazer a vida menos árdua. O rapaz não está certo do que deseja, pois alguma coisa o prende: talvez o passado, talvez o presente, ou, quem sabe, o futuro? Misterioso, pede para que não haja apego. Ela deseja discrição, nada de sentimento de posse, ciúmes, coisa alguma que se configure em namoro, pelo menos por enquanto.

A necessidade dos canários é que o pescoço dos bebês-pássaros fique mais firme, que eles cresçam, e que gritem bem alto por comida. Os pais defendem, muito bravos, o espaço do ninho e não permitem que intrusos, sejam outros animais ou aves, inclusive maiores que eles, invadam o território da família.

O relacionamento da moça e do rapaz evolui de forma secreta e não apenas discreta, como solicitado. As perguntas não podem ser feitas, e muito menos respondidas. Há uma evasiva, uma escapulida, como se houvesse algo grave para ser ocultado. Todo questionamento é visto como invasivo e só pode ser respondido em alguma conjunção estelar específica, ou pessoalmente, mas este momento especial nunca chega. Há muitos telefonemas no começo, depois fugas, despistes, não respostas, com o rapaz mais fugidio do que mosquito ensebado. Pouco se vê, pouco se fala, mas aponta a possibilidade de as coisas poderem acontecer, mesmo sem promessas. A ordem é não haver compromisso.

Os filhotes-canários crescem, emplumam-se. A faina de buscar comida é interminável, pois os animaizinhos estão muito esfomeados. O apetite pantagruélico vem da pressa que a natureza tem de resolver seu problema: dar autonomia aos passarinhos. O desejo dos pais, já exaustos, é que os bichinhos cubram os corpinhos de penas, e possam voar.

O namoro não sai do lugar, aliás, sai, dá dois passos atrás, dentro de uma situação inesperada: cena de ciúme explícito numa situação a dois que não tem nome. Até o imponderável pode sofrer uma medição. O que é aquilo? Nem o rapaz sabe. Fixa-se numa obsessão inexplicável. O relacionamento escasso fica mais esquisito. Os meses passam, e mesmo com investimento, interesse, e expectativa, no início, bilaterais, o caso não flui.

O ninho fica pequeno para a família-pássaro, e isso é bom sinal. Espera-se que os filhotes se tornem adultos. A vida faz a sua evolução temporal, e a natureza ordena: nasçam, cresçam e tornem-se independentes.

O rapaz e a moça contam os meses, mas a contagem torna-se ridícula, pelo inusitado do retornar antes de ir. Surgem queixas e cobranças. Parece haver uma estratégia deliberada, um jogo de esconde-esconde, uma corrida de gato e rato, em que na mesma hora em que nada acontece, há um alento, uma possibilidade.

A mãe-passarinho vê os filhos enfeitados, cobertos com penas amarelas. As asas estão fortes, no ponto dos dois se arriscarem no mundo maravilhoso de voar, ser livres, vagar pelo céu, ir além. A canária-mãe incentiva os filhos. Canta alto, agita o corpo, sacode as asas, mostra como é, empurra o filhote maior para a borda do ninho. Toda a família espera o vôo inaugural. O filho mais velho olha desconfiado, inseguro, vê o abismo profundo da borda do ninho. Olha os pais, que lhe enchiam o papo de alimento, vê o irmão, e no seu pavor, tem uma vertigem, desequilibra-se, cai em queda livre, e sem conseguir voar, esborracha-se contra uma pedra. Morre numa plastra de órgãos disformes.

Gente não é robô. Não sabe fazer de conta que não sente nada. Afeto brota, e o que fazer com ele? Os jovens medrosos têm o mesmo destino do passarinho. Como não têm coragem para atingir os píncaros celestes, na hora de voar, separam-se, secam seus sonhos não realizados, ajeitam seus sentimentos amarrotados e seguem suas medíocres vidas. Separados.


* Médica, jornalista e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.

5 comentários:

  1. Que interessante, Mara! É dessa forma que acontece, realmente. Parabéns! Abraço!

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  2. Mara,
    Seu texto desta semana é quase uma fábula, cheio de sabedoria. Gostei do contraponto dos pássaros filhotes com os jovens. Um grande abraço, doutora.

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  3. Mara, seu texto descreve as relações atuais de forma claríssima. A fome de amor perde para o medo de sofer e forma casais impossíveis. Acho muito triste e torço pelos que se arrisam.
    Um texto excelente, amiga. Parabéns e beijos.

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  4. Mesmo que o mergulho no escuro
    não te aponte certezas...ainda
    assim, prefiro mergulhar.
    Ótimo texto.
    Abraços

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  5. O tema de partida foi a frustração humana e animal, mas acabou servindo de alerta sobre a fugacidade dos relacionamentos atuais. Prevalece o medo de se entregar, e mesmo alguns que chegam ao casamento, não moram juntos mais do que seis meses.
    Obrigada gente, pela força dos comentários!

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