quinta-feira, 31 de março de 2011



Inimigo de infância


* Por Gustavo do Carmo


Durante oito anos Júlio foi humilhado por Giovanne no colégio. Não sofria agressões físicas, mas enfrentava piadinhas, gozações e chantagens. Piadinhas pelo seu jeito tímido e franzino, o seu óculos fundo-de-garrafa, os dentes superiores maiores e as orelhas de abano, que lhe rendiam os apelidos mais variados: Florzinha, Pulguinha, Cientista Maluco, Dentinho, Abridor de Garrafa ou de Lata, Dumbo e Orelhão Telefônico. Gozações quando tropeçava e caía no meio da rua ou acabava fazendo xixi nas calças na primeira série. E as chantagens eram sempre para obter algum lanche, uma cola ou mesmo dinheiro. Uma vez inventou um empréstimo inexistente que Júlio teria feito com ele para comprar uma merenda no recreio. Deu um prazo de duas semanas para receber o pagamento com a grave ameaça de morte e desova na vala. Qualquer reação do pobre menino era neutralizada com uma nova chantagem.

Giovanne era muito mais alto e forte do que Júlio. Parecia derrubar qualquer coisa com o mínimo esforço. Tinha cabelos louros raspados com máquina quatro. Por isso Júlio tinha muito medo. Os seus coleguinhas também. Exceto Mário, tão forte e mal-encarado como Giovanne, porém um amor de pessoa. Ele sempre defendia o amigo mais novo e ingênuo das provocações do colega de sala mau-caráter.

— Por que não procura alguém do seu tamanho, imbecil? Dizia Mário quando Giovanne vinha com ameaças.

— Então venha, reagia Giovanne. E os dois valentões chegavam às vias de fato. Mário se prejudicava por causa disso. Por pouco não foi expulso da escola. Só não aconteceu porque, além de ser um aluno exemplar, foi defendido por Júlio na frente da rigorosa diretora. O tímido menino se comportou como um grande advogado, dizendo que as brigas eram em sua defesa. Como punição, Júlio e Mário ficaram apenas estudando duas horas depois da aula.

Giovanne nunca era punido porque diziam que o seu pai subornava a diretora. A família era muito rica, mas todos desconheciam a origem de sua renda. Todo mundo especulava que o pai seria traficante de drogas, dono de cassino clandestino, político influente ou mesmo um empresário honesto com medo de escândalos.

O tempo passou. Vinte e cinco anos depois, Júlio tornou-se um respeitado advogado (profissão que escolheu na época em que defendeu o amigo valente), com muito dinheiro que ganhou em suas causas vitoriosas. Casou-se com Rebecca e teve um filho que batizou de Mário em homenagem ao seu herói dos tempos do colégio, que virou policial militar, mas levou um tiro durante uma ação contra traficantes e ficou paraplégico.

Um dia Júlio lembrou de Giovanne. Imaginou que, apesar de ter sofrido muito com ele na escola, ele deve ter se regenerado e se tornado um homem honesto e respeitável. Contou para a esposa – que desconhecia o brutamontes, pois conheceu o marido apenas na faculdade – que sonhou com o inimigo de infância. E no sonho foi surrado por ele.

Religioso, Júlio acreditava piamente que Giovanne virara um homem normal. Para eles, todos têm direito a uma segunda chance. Por isso, iniciou uma busca por notícias do inimigo de infância. Queria encontrá-lo e até se desculpar por supostamente tê-lo chateado. Ou então ouvir, sem querer cobrar, um pedido de desculpas e justificativas pelas ameaças que sofria. Sonhou com uma amizade madura e até uma parceria nos negócios. Desejou rir de todas as brigas que tiveram no passado.

— Você está louco, querido? Levava surra... Questionava Rebecca, estranhando a decisão do marido, antes de ser interrompida por Júlio.

— Não. Eu nunca apanhei dele.

— Mas você não acabou de dizer que levou uma surra dele?

— Eu SONHEI que levei uma surra dele.

— Mesmo assim. Você já me contou que ele te humilhava, chantageava e ameaçava.

— Isso foi há vinte e cinco anos atrás, Rebecca. Hoje ele já é um homem feito. Você está sendo preconceituosa.

— Se ele já fazia tudo isso naquela época, imagina hoje? Eu não vou deixar você procurar esse cara! Nós temos o Mário para cuidar e eu ainda sou muito nova para ficar viúva. Promete que não vai procurar esse homem?

Júlio levantou-se da mesa do café sem responder nada à esposa. Despediu-se do filho que ainda dormia e foi para o escritório. Em seu notebook acessou a internet e procurou pelo nome de Giovanne Ribeiro Tagliarine, que era o nome completo do seu inimigo. Não achou nada. Entrou no orkut e também nada encontrou.

Na verdade, só localizou dois ex-colegas do primeiro grau: Luciano, um rapazinho tímido, que também era provocado por Giovanne, principalmente pelo seu jeito efeminado, e Natália, a menina por quem era apaixonado na época. Mandou e-mails para os dois.

Horas depois, o primeiro respondeu que formou-se em jornalismo e assumiu a sua homossexualidade. Não sabia de Giovanne e nem queria saber. Tinha trauma dele. Já Natalinha não tinha notícias do bad boy do colégio há anos, mas deu um conselho de amiga, pelo bate-papo:

— Esquece esse cara, senão você vai se arrepender. Ele é um bandido. Vai por mim. Em vez de sentir medo, Júlio encorajou-se ainda mais. Estava cego de esperanças em encontrar Giovanne regenerado. Aliás, não era mais esperança. Já se tornara uma obsessão reencontrar o cara que o humilhou por oito anos.

Júlio contratou um detetive que estudou com ele na faculdade para descobrir o paradeiro de Giovanne. Um mês depois, recebeu um dossiê: Giovanne Ribeiro Tagliarine é filho de uma brasileira, Genilce, com um italiano, Pietro, empresário condenado por contrabando, tráfico de drogas, homicídio, formação de quadrilha, falsidade ideológica e corrupção. De Giovanne só conseguiu a informação de que ele fora condenado na juventude por tentativa de homicídio e lesão corporal contra um pedreiro que dormia na rua. Ficou seis meses preso. Mas logo ganhou uma condicional. Atualmente administra uma fazenda no pantanal.

Júlio agora se convenceu. De que Giovanne virou um próspero e pacato fazendeiro, descansando no interior da violência da cidade grande.

Chegou em casa, arrumou as malas e, com o endereço da fazenda de Giovanne nas mãos, partiu de avião do Rio para Campo Grande, onde pegaria uma chalana para a fazenda. Mentiu para a esposa porque, com certeza, ela faria um escândalo dramático e o impediria de viajar e encontrar o ex-inimigo. Avisou apenas que foi para Brasília a trabalho, sem dizer o motivo

Júlio não mostrou e nem comentou sobre o dossiê para ninguém. Mas esqueceu em casa e a primeira a ler o material foi Rebecca, que logo percebeu que a pasta não era nenhuma petição. Desesperou-se. Deixou o filho na casa da mãe e correu atrás de Mário, o verdadeiro amigo de infância do marido.

— Mário, você precisa me ajudar! O Júlio enlouqueceu e viajou para o Mato Grosso do Sul para encontrar aquele monstro que o humilhava na infância.

— Me desculpe, Rebecca. Gosto muito de vocês, mas eu não vou poder ajudá-la.

— Como não???? O Júlio está correndo muito perigo. Eu achei um dossiê sobre esse tal de Giovanne. O cara é um bandido. Foi condenado por agressão quando jovem. É filho de um mafioso.

— Eu estou sem falar com ele há três anos. Desde quando ele começou a dizer que queria encontrar esse cara.

— Mas só tem um mês que ele está com essa paranóia. Ele começou a falar disso ao me contar um sonho que teve com o tal de Giovanne que ainda o surrou.

— Só tem um mês que ele te conta, né?

Depois de duas horas de viagem desde o aeroporto da capital sul-matogrossense, Júlio chegou à fazenda. Não era uma simples fazendinha do interior. Era um latifúndio de um verde que doía os olhos. O pasto por onde circulavam vacas holandesas e boi zebu era tão bem aparado que parecia ser de veludo. Do outro lado do portal de mármore com portas de mogno, havia um haras com dez cavalos puro-sangue e a mansão de quinze quartos e vinte e cinco cômodos.

Mas Júlio não chegou a conhecer. Foi recebido por três parrudos seguranças vestidos com terno e gravata de primeira linha e esporas nos sapatos. Foram as últimas pessoas que viu antes de ser acordado na enfermaria da fazenda por um coroa gordo, de cabelos brancos, rosto bastante enrugado, olhos verdes e corpo forte vestido com um terno de linho impecavelmente branco.

Ainda sentia o gosto enferrujado do sangue na boca quando ouviu:

— Por que não disse antes que era você, Júlio? Meu velho amigo de infância!


* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores.

Um comentário:

  1. Esse tipo de curiosidade não me acomete, as lembranças
    vão e vem, mas depois que as deixo não costumo olhar para trás.
    Se bem não me fez, para quê restituí-la?
    Sei lá...me parece doentio.
    Ótimo texto Gustavo.
    Abraços

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