Perguntas, perguntas e mais perguntas
* Por Marcelo Sguassábia
Preencher formulário é tarefa invariavelmente entediante, dispendiosa e de finalidade discutível. Às vezes o ritual de preenchimento beira o insuportável, e o castigado leitor há de me dar razão. É quando somos obrigados, por exemplo, a garranchar aqueles malditos papéis de imigração nas viagens internacionais. Duvido que seja de menos de 90% o universo dos que deixam a tarefa para os últimos dez minutos de voo, duvido que a caneta (emprestada) não falhe bem na hora de assinar o bagulho e duvido que você e o sujeito do seu lado não usem como apoio a bandejinha de refeições (dependendo da companhia aérea, a mesma bandejinha) – o que coroa o desinteressante procedimento com uma nojenta mancha de gordura no formulário.
Mas o que mais irrita mesmo nem é tanto a falta de paciência e o excesso de má vontade nas respostas, mas a natureza astuciosa das perguntas. Não raro deparo-me, logo abaixo dos campos de nome, sobrenome, RG, tipo sanguíneo, coloração usual das fezes e se tive ou não pé chato em algum momento da vida, com questionamentos que tirariam até a Madre Teresa de Calcutá do sério. Tipo: a frequência com que aparo as unhas, a densidade por cm2 de pelos no antebraço e, ainda no âmbito dos membros superiores, a pior das indiscrições que um perguntador profissional poderia cometer: quantos dedos eu possuo em cada uma das mãos, e se todos eles constam como meus dependentes nas seis últimas declarações do imposto de renda.
A falta de cerimônia em vasculhar a vida alheia inclui perguntas escabrosas sobre segredos de alcova, como o material do puxador de cortina do meu quarto e se as cerdas de minha escova de dentes são macias, médias ou duras. Admito o fornecimento de informações úteis que não caracterizem violação de privacidade, coisas de menor importância e sobre as quais usualmente não se faz sigilo, como renda mensal bruta, posição sexual favorita, tamanho do pênis em repouso, em quem votei para presidente da república e outras amenidades de igual quilate.
Entretanto, a saia fica justa quando surgem especulações que devassam a vida do cidadão de maneira ostensiva e desrespeitosa. Dou exemplos. Se o botijão de gás da minha cozinha veste ou não capa florida; há quanto tempo ando afastado do confessionário e quais os motivos que me levaram a tal distanciamento; se me importaria em eventualmente substituir por H3O a costumeira H2O armazenada na moringa do criado-mudo em caso de racionamento de guerra ou outra circunstância emergencial; se tenho o hábito de separar o arroz do feijão no prato ou se disponho um sobre o outro, a fim de abrir mais espaço à mistura; dos sobrinhos do Pato Donald, qual o meu predileto e quantas pessoas de nome Onofre possuo na família; se porventura já me ocorreu a ideia de testemunhar o dia a dia de uma prisão turca; se faço ou não parte do rol de esquisitos que folheiam o jornal de trás para frente às terças e quintas, da frente para trás às quartas e sextas, aleatoriamente nos fins de semana e nunca às segundas-feiras; se a abolição do trema causou transtornos mensuráveis em minha rotina habitual e se a revelação de que o caqui engorda me fez consumir mais ou menos carambolas que a minha média diária; se o uso excessivo de ponto e vírgula prejudica ou não a fluência da leitura, e em que circunstância o seu emprego incomoda menos: nos clássicos da literatura, nas bulas de remédio ou nos folhetos de missa.
* Redator publicitário há quase 30 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”
* Por Marcelo Sguassábia
Preencher formulário é tarefa invariavelmente entediante, dispendiosa e de finalidade discutível. Às vezes o ritual de preenchimento beira o insuportável, e o castigado leitor há de me dar razão. É quando somos obrigados, por exemplo, a garranchar aqueles malditos papéis de imigração nas viagens internacionais. Duvido que seja de menos de 90% o universo dos que deixam a tarefa para os últimos dez minutos de voo, duvido que a caneta (emprestada) não falhe bem na hora de assinar o bagulho e duvido que você e o sujeito do seu lado não usem como apoio a bandejinha de refeições (dependendo da companhia aérea, a mesma bandejinha) – o que coroa o desinteressante procedimento com uma nojenta mancha de gordura no formulário.
Mas o que mais irrita mesmo nem é tanto a falta de paciência e o excesso de má vontade nas respostas, mas a natureza astuciosa das perguntas. Não raro deparo-me, logo abaixo dos campos de nome, sobrenome, RG, tipo sanguíneo, coloração usual das fezes e se tive ou não pé chato em algum momento da vida, com questionamentos que tirariam até a Madre Teresa de Calcutá do sério. Tipo: a frequência com que aparo as unhas, a densidade por cm2 de pelos no antebraço e, ainda no âmbito dos membros superiores, a pior das indiscrições que um perguntador profissional poderia cometer: quantos dedos eu possuo em cada uma das mãos, e se todos eles constam como meus dependentes nas seis últimas declarações do imposto de renda.
A falta de cerimônia em vasculhar a vida alheia inclui perguntas escabrosas sobre segredos de alcova, como o material do puxador de cortina do meu quarto e se as cerdas de minha escova de dentes são macias, médias ou duras. Admito o fornecimento de informações úteis que não caracterizem violação de privacidade, coisas de menor importância e sobre as quais usualmente não se faz sigilo, como renda mensal bruta, posição sexual favorita, tamanho do pênis em repouso, em quem votei para presidente da república e outras amenidades de igual quilate.
Entretanto, a saia fica justa quando surgem especulações que devassam a vida do cidadão de maneira ostensiva e desrespeitosa. Dou exemplos. Se o botijão de gás da minha cozinha veste ou não capa florida; há quanto tempo ando afastado do confessionário e quais os motivos que me levaram a tal distanciamento; se me importaria em eventualmente substituir por H3O a costumeira H2O armazenada na moringa do criado-mudo em caso de racionamento de guerra ou outra circunstância emergencial; se tenho o hábito de separar o arroz do feijão no prato ou se disponho um sobre o outro, a fim de abrir mais espaço à mistura; dos sobrinhos do Pato Donald, qual o meu predileto e quantas pessoas de nome Onofre possuo na família; se porventura já me ocorreu a ideia de testemunhar o dia a dia de uma prisão turca; se faço ou não parte do rol de esquisitos que folheiam o jornal de trás para frente às terças e quintas, da frente para trás às quartas e sextas, aleatoriamente nos fins de semana e nunca às segundas-feiras; se a abolição do trema causou transtornos mensuráveis em minha rotina habitual e se a revelação de que o caqui engorda me fez consumir mais ou menos carambolas que a minha média diária; se o uso excessivo de ponto e vírgula prejudica ou não a fluência da leitura, e em que circunstância o seu emprego incomoda menos: nos clássicos da literatura, nas bulas de remédio ou nos folhetos de missa.
* Redator publicitário há quase 30 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”
Faltou uma e essa eu presenciei.
ResponderExcluirPerguntaram a uma senhora à minha frente
se tinha filhos, quantos eram e se todos eram
do mesmo pai.
Acha que continuei na fila? Sei lá o que ela podia me perguntar...
Ótimo texto.
Distraiu-me, enumerou coisas impossíveis e inimagináveis, e fez-me rir. A carapuça me assentou em profissional de fazer perguntas. Seja na medicina, seja no jornalismo, a minha profissão é perguntar, e já formulei algumas dessas pra lá de difíceis. Marcelo, você arrebentou!
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