terça-feira, 1 de fevereiro de 2011


O livro perdido

O escritor nem sempre consegue completar sua obra antes de morrer. Às vezes, planeja escrever um último livro e não dá tempo. Em outras ocasiões, até inicia a sua redação, mas não consegue terminar. Há casos, ainda, em que a obra, afinal, é concluída, mas não passou pela revisão final. Não ficou, portanto, em condições ideais de ser publicada. E as situações desse tipo se multiplicam. Afinal, a menos que a pessoa esteja muito doente, é impossível prever, com dose razoável de acerto, a data da própria morte. Mesmo sofrendo doença terminal, a morte é imprevisível.
Em alguns casos, parentes muito chegados, ou amigos bastante íntimos, concluem os livros inacabados e os lançam postumamente. Estes, todavia, são raros. Há editores que publicam as obras mesmo inacabadas, dependendo do quanto o autor já escreveu e, principalmente, da sua importância histórica. Na maioria dos casos, porém, os originais dos livros inconclusos se perdem ou, quando não, se misturam aos papéis pessoais do autor até que um dia alguém jogue fora, durante uma faxina qualquer. Uma pena!”
“Quase” aconteceu coisa parecida com o último livro do poeta joseense (uma das figuras centrais da história Semana da Arte Moderna de 1922), Cassiano Ricardo. Em fins de 1973, ele estava trabalhando em seu 14º livro, previsto para ser lançado até meados do ano seguinte, intitulado “Dexistência”. Todavia, não deu tempo. Em 14 de janeiro o escritor morreu
Dada a sua importância para a literatura brasileira, como expoente do modernismo e membro da Academia Brasileira de Letras, sua morte causou, como seria de se esperar, grande consternação nos meios culturais e literários. Tanta, que todos até se esqueceram do livro que estava escrevendo.
Não se sabe por qual razão, a obra se perdeu no gabinete de trabalho do escritor. Procura daqui, mexe dali, remexe esta pilha de papéis, revira aquela outra, e nada dos originais aparecerem. E, dessa forma, “Dexistência” foi dado como obra perdida e ninguém falou mais nisso. Essas coisas, convenhamos, às vezes acontecem. E sequer são tão raras de ocorrer, como muitos podem supor.
Isso já aconteceu comigo, antes da era do computador, e não apenas com um único texto, mas com pilhas deles, guardadas, vias de regra, em pastas. Creio que apenas em uma única ocasião deixei de localizar esses “papéis perdidos”. Usualmente os encontro, não raro, porem, uma década depois de haver sentido falta deles e precisado achá-los. É sempre assim. Parece coisa do Tinhoso!
Pois foi o que aconteceu com o livro de Cassiano Ricardo. E, em agosto de 2010, 36 anos depois, eis que os originais apareceram. Um pesquisador, mexendo nos papéis do poeta, nos arquivos da fundação que leva o nome dele, em São José dos Campos, no Vale do Paraíba, deu de cara com essa coleção de poemas. Hosana!!! É sempre assim, encontramos as preciosidades que perdemos quando menos esperamos e, geralmente, quando não precisamos delas.
No Rio Grande do Sul, minha terra natal, quando alguém perde algo desse tipo acende uma vela para o Negrinho do Pastoreio e... tiro e queda. O que estava desaparecido, reaparece em três tempos. Embora gaúcho de nascimento, estou uma “eternidade” longe dos meus pagos. Anos atrás, numa das minhas raras incursões a Porto Alegre, caminhando pelas ruas de determinado e tradicional bairro residencial, algo me chamou particularmente a atenção.
No fundo do quintal da maioria das residências, havia uma espécie de “casinha”, dessas de pombo, porém no chão. Para casas de cachorro, eram muito pequenas. Para abrigo de aves, estavam em lugar errado, pois deveriam estar no alto. Foi quando um parente me explicou para o que as tais “casinholas” serviam: para acender velas para o Negrinho do Pastoreio, quando alguma coisa era perdida.
Bem, voltemos a Cassiano Ricardo. Já escrevi muito, pelo menos umas dez crônicas, sobre esse poeta, de imensa criatividade, que influenciou gerações. Seu nome completo era Cassiano Ricardo Leite. Nasceu em São José dos Campos em 26 de julho de 1896. Na famosa Semana de Arte Moderna de 1922 estava com 25 anos. Iria completar 26 em julho. Morreu na cidade do Rio de Janeiro em 14 de janeiro de 1974. E, como informei, sem que pudesse entregar à editora seu derradeiro livro. Certamente, a família fará isso agora, que ele foi encontrado.
Dessa forma, “Dexistência”, finalmente, irá se juntar a “Dentro da Noite” (1915), “Vamos caçar papagaios” (1926), “Borrões de verde e amarelo” (1926), “Martim Cererê” (1928), “O sangue das horas” (1943), “Um dia depois do outro” (1947), “Poemas murais” (1950), “A face perdida” (1950), “O arranha-céu de vidro” (1956), “Poesias completas” (1957), “22 e a poesia de hoje” (1962), “Algumas reflexões sobre poética de vanguarda” (1964) e “Jeremias sem-chorar” (1964), em sua farta e eclética bibliografia. Por que eclética? Porque vários desses livros que mencionei são de ensaios, e muito bons. A “descoberta” de “Dexistência” é, sem dúvida, régio presente para os admiradores de Cassiano Ricardo e para os amantes de boa poesia.

Boa leitura.

O Editor.

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2 comentários:

  1. E que agonia nos dá quando exaustos de tanto
    procurar os damos como perdidos, e aí numa bela
    tarde depois de anos eles reaparecem como por encanto
    ou capricho.
    Abração

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  2. Tem uma marchinha de carnaval que fala em Martim Cererê.

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