E que calote, cruzes!
* Por Lêda Selma
Seu Antônio tinha tudo para ser um grande escritor, um ficcionista de mão, isto é, de mente cheia, ou, no mínimo, exímio contador de casos, tamanho seu acervo imaginário. Cada um... daqueles de arrepiar até cabelos inexistentes. Se houvesse plateia, então, aí, a coisa se avolumava, beirando o surreal.
Por mais de vezes, já recontei a história do tal relógio de bolso que, perdido à beira de uma lagoa, durante animada pescaria, apareceu, vinte anos depois, embalado pelo antigo tique-taque, tique-taque, tique-taque. Naturalmente, a pergunta era inevitável: apareceu onde? Segundo seu Antônio, que jurava ser a mais genuína verdade, suspenso num galho do pé de umbu, que ele plantara à época, e ficara enorme. Detalhe: naquele tempo, idos de 1930, dava-se corda aos relógios, não? Portanto, só mesmo um milagre para mantê-lo em funcionamento por duas décadas. E ai de quem duvidasse de seu Antônio Soares...
No fulgor da juventude, mesmo aos 90 anos, com um pratinho de tira-gosto, de preferência, torresmo, e um copo com a tal, dizia ele, “branquela manhosa e fogosa”, sobre a mesa do boteco (a inseparável cachaça, “remédio eficiente para qualquer mal”, garantia), rodeado de amigos, esbaldava-se na alegria e na criatividade. Pela manhã e à tarde, que fique bem claro! Eta, sogrão!
Mestre do exagero, não se fazia de suplicado: reabria o arquivo de recordações, espichava a memória, acionava-lhe as asas e, sem dispensar o caráter dramático de seus causos, impingia-lhes forte dose de emoção:
– Já sofri muito na vida, gente!. Durante 25 anos, padeci com crises seguidas de maleita, toda semana, e uma mais forte que a outra; nem sei como não morri! Aos 32, sarampo dos bravos, virado em pneumonia e revirado em asma, outro sofrimento! E a caxumba, então? A minha não desceu, meus nove filhos são a prova disso. Uma maldosidade atrás da outra, Bom Jesus da Lapa! Mas da maleita me livrei, ah! se me livrei! Por causa duma promessa que fiz, e que cumpri por mais de trinta anos.
– Promessa, seu Antônio? Melhor, negociação com os santos...
– Foi o jeito. Um rosário, todos os dias, eu rezava, ajoelhado sobre milhos. Promessa pro resto da vida. E promessa é promessa, coisa séria demais!
– Rosário?! Não seria um terço? – escapou-me, capciosa, a pergunta.
– Terço?! Que terço, moça?! Terço não dava conta de resolver meu problema, não, oxente! E santo gosta lá de ser embromado? Foi rosário mesmo, uma troca justa com os santos. Deus me livre de brincar com essas coisas! Eu sempre cumpri minhas obrigações com Ele e com seus subalternos; nunca caloteei um deles, nunca! Promessa é trato sério, e os santos contam com a palavra e a pontualidade da gente, senão, o crédito acaba, e o sujeito fica com o nome sujo, um péssimo investimento.
– E então, provoquei, depois de tanta reza, o sofrimento acabou?
– Acabou. Graças aos meus protetores, tanto o Superior como os subordinados, além do meu empenho em cumprir o combinado.
Bem, o velho sorriso, sintomático e malicioso, anunciava que ainda havia o merecido desfecho para a história, cuja veracidade, bem, deixa pra lá! E seu Antônio concluiu:
– Vou confessar, verdade seja dita: olhe, não cumpri a promessa por inteiro não. Quero dizer, de própria voz e de próprios joelhos. Estava ficando cansado, velho... os santos haveriam de me entender.
– E como o senhor resolveu o impasse? – insisti, curiosa.
– Ah! paguei uma amiga antiga, lá da Bahia, pra cumprir a promessa, até o fim, em meu nome! Aí, os santos não poderão reclamar de mim. Se reclamarem, é lá com ela, a responsável pela dívida
É, o velho Antônio Soares, que subiu à Instância Superior aos 92 anos, deu o maior calote nos santos!
(Crônica publicada no Diário da Manhã, de Goiânia, em 22 de janeiro de 2011).
• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.
* Por Lêda Selma
Seu Antônio tinha tudo para ser um grande escritor, um ficcionista de mão, isto é, de mente cheia, ou, no mínimo, exímio contador de casos, tamanho seu acervo imaginário. Cada um... daqueles de arrepiar até cabelos inexistentes. Se houvesse plateia, então, aí, a coisa se avolumava, beirando o surreal.
Por mais de vezes, já recontei a história do tal relógio de bolso que, perdido à beira de uma lagoa, durante animada pescaria, apareceu, vinte anos depois, embalado pelo antigo tique-taque, tique-taque, tique-taque. Naturalmente, a pergunta era inevitável: apareceu onde? Segundo seu Antônio, que jurava ser a mais genuína verdade, suspenso num galho do pé de umbu, que ele plantara à época, e ficara enorme. Detalhe: naquele tempo, idos de 1930, dava-se corda aos relógios, não? Portanto, só mesmo um milagre para mantê-lo em funcionamento por duas décadas. E ai de quem duvidasse de seu Antônio Soares...
No fulgor da juventude, mesmo aos 90 anos, com um pratinho de tira-gosto, de preferência, torresmo, e um copo com a tal, dizia ele, “branquela manhosa e fogosa”, sobre a mesa do boteco (a inseparável cachaça, “remédio eficiente para qualquer mal”, garantia), rodeado de amigos, esbaldava-se na alegria e na criatividade. Pela manhã e à tarde, que fique bem claro! Eta, sogrão!
Mestre do exagero, não se fazia de suplicado: reabria o arquivo de recordações, espichava a memória, acionava-lhe as asas e, sem dispensar o caráter dramático de seus causos, impingia-lhes forte dose de emoção:
– Já sofri muito na vida, gente!. Durante 25 anos, padeci com crises seguidas de maleita, toda semana, e uma mais forte que a outra; nem sei como não morri! Aos 32, sarampo dos bravos, virado em pneumonia e revirado em asma, outro sofrimento! E a caxumba, então? A minha não desceu, meus nove filhos são a prova disso. Uma maldosidade atrás da outra, Bom Jesus da Lapa! Mas da maleita me livrei, ah! se me livrei! Por causa duma promessa que fiz, e que cumpri por mais de trinta anos.
– Promessa, seu Antônio? Melhor, negociação com os santos...
– Foi o jeito. Um rosário, todos os dias, eu rezava, ajoelhado sobre milhos. Promessa pro resto da vida. E promessa é promessa, coisa séria demais!
– Rosário?! Não seria um terço? – escapou-me, capciosa, a pergunta.
– Terço?! Que terço, moça?! Terço não dava conta de resolver meu problema, não, oxente! E santo gosta lá de ser embromado? Foi rosário mesmo, uma troca justa com os santos. Deus me livre de brincar com essas coisas! Eu sempre cumpri minhas obrigações com Ele e com seus subalternos; nunca caloteei um deles, nunca! Promessa é trato sério, e os santos contam com a palavra e a pontualidade da gente, senão, o crédito acaba, e o sujeito fica com o nome sujo, um péssimo investimento.
– E então, provoquei, depois de tanta reza, o sofrimento acabou?
– Acabou. Graças aos meus protetores, tanto o Superior como os subordinados, além do meu empenho em cumprir o combinado.
Bem, o velho sorriso, sintomático e malicioso, anunciava que ainda havia o merecido desfecho para a história, cuja veracidade, bem, deixa pra lá! E seu Antônio concluiu:
– Vou confessar, verdade seja dita: olhe, não cumpri a promessa por inteiro não. Quero dizer, de própria voz e de próprios joelhos. Estava ficando cansado, velho... os santos haveriam de me entender.
– E como o senhor resolveu o impasse? – insisti, curiosa.
– Ah! paguei uma amiga antiga, lá da Bahia, pra cumprir a promessa, até o fim, em meu nome! Aí, os santos não poderão reclamar de mim. Se reclamarem, é lá com ela, a responsável pela dívida
É, o velho Antônio Soares, que subiu à Instância Superior aos 92 anos, deu o maior calote nos santos!
(Crônica publicada no Diário da Manhã, de Goiânia, em 22 de janeiro de 2011).
• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.
Ah...mas essa o santo há de
ResponderExcluirperdoar.
Parabéns!
Abraços