Tarcísio
* Por
Emanuel Medeiros Vieira
“Bebemos
vendados da taça
da
vida enquanto
lavamos
seu ouro sem jaça
com
nosso pranto.
A
venda desfaz-se,
porém,
antes da morte,
e
o que nos seduzia
tem
a mesma sorte,
Vazia,
a taça então revela
seu
nada insosso:
bebíamos
sonho que,
nela,
nem era nosso!”
(Mikhail
Liérmontov (1814-1841) – “A Taça da Vida”
Havia campinhos,
verdes. Chácaras. Brincávamos. Sim, Tarcísio, era outra ilha. Não me escutas. É
apenas uma carta que não foi enviada e que não poderá mais ler. Lembras dos
nossos passeios no Parque da Redenção
(não o espaço degradado de hoje)?, das idas às ilhas do Guaíba? Dos belíssimos
faroestes que assistíamos juntos?
(Quando já vivíamos em Porto Alegre.) O dinheiro sempre curto, mas
éramos jovens e podíamos tudo. Onipotentes, a Indesejada das Gentes não passava
pela nossa cabeça.
MUITO MAIS QUE IRMÃOS,
FOMOS SEMPRE AMIGOS – sempre.
Terei te dito em vida?
Não é aquela apologia que (quase
sempre) se faz aos que morreram.
É algo mais fundo,
visceral. Como um pedaço de mim (outro) que se vai. Parecerei piegas? Mas muita
gente que amo tem ido embora. Não dá para internalizar um luto: e lá vem outro.
Posso contar nos dedos, um ser humano tão carregado de compaixão, de espírito
“franciscano”, de generosidade, de humildade, de ternura – como tu, hermano.
Sempre foste muito bem informado e lias muito.. Eras forte, mas defendias teus pontos de vista com
extrema dignidade, sem ofender.
Quanto te vi pela
última vez, há mais de ano, com Célia e
Júlio Cesar, na “tua Brusque” (e do César também), teus cabelos estavam
brancos.
Pelas fotos que me
mostraram depois, os cabelos estavam ainda mais brancos e informaram que a tua
saúde piorara.
Ligavas sempre para
saber da minha enfermidade.
Um dia disseste: “O
que posso fazer por ti, meu irmão é orar”.
(O maior presente que
“sinto” – a maior dádiva que alguém pode me ofertar).
Numa das vezes que ligaste, foi numa segunda-feira, na
manhã seguinte ao Dia das Mães: informaste que não irias visitar o cemitério,
onde repousava a tua Rut (um casamento forte de 52 anos). Mas tua neta Bruna,
havia comprado uma rosa. E lá foste visitar a Rut.
Estarei sendo
sentimental demais? Hoje vocês dois
estão juntos e deixaste este buraco enorme. Tua partida foi exatamente quatro
meses após a morte da mulher que amaste.
Apesar de todas as
lutas (não fáceis), papai e mamãe nos deram uma família unida. É claro que havia uma proximidade grande –
como dizer? – mais de “pele”, por sermos os últimos: eu, Miriam, tu, Cida. E
assim foi conosco.
Tenho escrito tanto
sobre os mortos, falado em cerimônias fúnebres, que parece que nada mais tenho
a dizer. Não sei. Te amei muito, meu irmão.
Alguém já disse que a
vida é mais dura para os que não se amansam.
Outra pessoa afirmou
que só com o tempo aprendemos a não lamentar o que perdemos.
(Eu indago:
conseguimos?). Então, aprenderemos a ser gratos pelo que tivemos.
Solidário, firme nas
suas convicções, generoso e justo. Assim era o Tarcísio.
Mas muito mais. Nunca
entenderemos inteiramente o que é ou foi um ser humano.
Não importa. A Indesejada
das Gentes tem dado muitos sustos. Nunca saberemos..
(E num domingo, pelas
nove da manhã, toca o telefone e o teu primogênito Rubens Alfredo informa que
tinhas ido embora para sempre, que não estavas mais aqui. Era 19 de junho e a
partida foi às sete da manhã).
Que doídas sete horas
da manhã de um domingo da vida.
O que fizemos,
permanece. A eternidade será isso? A memória colada na pele. Estás e estarás
sempre conosco, meu querido e inesquecível irmão Tarcísio
(Releva os lugares-comuns. Só queria escrever uma
carta a um irmão muito amado que não está mais aqui. Meus queridos compadres
Lídia e Paulão te mandam um abraço grande. E Clarice e Célia te beijam – com
saudade).
É preciso acreditar
que o que nos resta é a palavra. Que ela ficará.
(Brasília, julho de
2016)
* Romancista, contista, novelista e
poeta catarinense, residente em Brasília, autor de livros como “Olhos azuis –
ao sul do efêmero”, “Cerrado desterro”, “Meus mortos caminham comigo nos
domingos de verão”, “Metônia” e “O homem que não amava simpósios”, entre
outros.
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