domingo, 21 de agosto de 2016

Lei de bonde para avião


* Por Anna Lee


Ainda que aconteçam tragédias como o acidente com vôo 1907 da GOL, que deixou o país chocado, o avião é considerado senão o meio de transporte mais seguro, pelo menos um dos mais. E o que se tem visto é que a cada dia cresce o número de usuários nos aeroportos do Brasil, do mundo.

Dia desses, voltando de Belo Horizonte para o Rio, me dei conta disso. Estava aborrecida porque praticamente nãomais vôos no aeroporto da Pampulha. Aos poucos, o transporte aéreo da capital mineira está sendo transferido para o aeroporto internacional de Confins, que fica a cerca de duas horas do Centro da cidade, no município de Lagoa Santa, isso sem contar com o trânsito terrível, que aumenta bastante o tempo desse percurso. Uma mão de obra chegar ou partir de Belo Horizonte.

Fiquei mais aborrecida ainda porque meu pai, que era meu companheiro de viagem, me obrigou a chegar no aeroporto muito mais cedo do que o horário solicitado pela companhia aérea. Meu pai é carioca, mas chega com muita antecedência a todos os lugares a que vai. Conta sempre com a possibilidade de um imprevisto pelo caminho. Eu sou mineira, mas estou sempre atrasada. Acho sempre que, de uma forma ou de outra, tudo acaba dando certo. E é claro que nós dois vivemos às turras, quando o assunto é horário.

Porém, dessa vez, tive de agradecê-lo pela cautela. Quando havia muito que tínhamos feito o check-in e, como não poderia deixar de ser, tomávamos calmamente um café acompanhado de pão-de-queijo, olhei para o saguão e vi um mar de gente. Não pude imaginar como seria possível todos aqueles passageiros se entenderem com a companhia aérea e como conseguiriam embarcar. Um tumulto.

Lembrei-me então de uma crônica de Machado de Assis por conta da democratização compulsória dos bondes ocorrida no Rio no início do século 20, que deu direito à população menos favorecida economicamente de dividir o mesmo transporte público com a burguesia e os grupos tradicionais da sociedade.

Que fique claro que sou a favor de qualquer tipo de democratização, mas que cairia bem um tratado para a convivência social nos aeroportos e aviões, tal como Machado de Assis sugeriu para os bondes, isso cairia.

Abaixo reproduzo a crônica. Genial.

Como comportar-se no bonde:
Ocorreu-me compor umas certas regras para uso dos que freqüentam “bonds”. O desenvolvimento que tem sido entre nós esse meio de locomoção, essencialmente democrático, exige que não seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta artigos. Vão apenas dez:

Art.1 – Dos encatarroados
Os encatarroados podem entrar nos “bonds” com a condição de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro. Quando a tosse for teimosa, que não permita esta limitação, os encatarroados têm dois alvitres: - ou irem a , que é bom exercício, ou meterem-se na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue. Os encatarroados que estiverem nas extremidades dos bancos devem escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no próprio “bond”, salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçônico, vocação etc., etc...

Art. II – Da posição das pernas
As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo banco. Não se proíbem formalmente as pernas abertas, mas com a condição de pagar os outros lugares, e fazê-los ocupar por meninas pobres ou viúvas desvalidas, mediante a uma pequena gratificação.

Art. III – Da leitura dos jornais
Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus. Também não é bonito encostá-los no passageiro da frente.

Art. IV – Dos quebra-queixos
É permitido o uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: – a primeira quando não for ninguém no “bond”, e a segunda ao descer.

Art. V – Dos amoladores
Toda pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-se-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de pontapés. Sendo provável que ele prefira os pontapés, a pessoa deve imediatamente pespegá-los. No caso, aliás, extraordinário e quase absurdo de que o passageiro prefira a narração, o proponente deve fazê-la minuciosamente, carregando muito nas circunstâncias mais triviais, repelindo os ditos, pisando e repisando as coisas, de modo que o paciente jure aos seus deuses não cair em outra.

Art. VI – Dos perdigotos
Reserva-se o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo nas ocasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco. Também podem emitir-se na plataforma de trás, indo o passageiro ao do condutor, e a cara para a rua.

Art. VII – Das conversas
Quando duas pessoas, sentadas a distância, quiserem dizer alguma coisa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte palavras, e, em todo caso, sem alusões maliciosas, principalmente se houver senhoras.

Art. VIII – Das pessoas com morrinha
As pessoas com morrinha podem participar dos “bonds” indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para o outro. Será melhor que morem em rua por onde eles passem, porque então podem vê-los mesmo da janela.

Art. IX – Da passagem às senhoras
Quando alguma senhora entrar, o passageiro da ponta deve levantar-se e dar passagem, não porque é incômodo para ele ficar sentado, apertando as pernas, como porque é uma grande má-criação.

Art. X – Do pagamento
Quando o passageiro estiver ao de um conhecido e, ao vir o condutor receber as passagens, notar que o conhecido procura o dinheiro com certa vagareza ou dificuldade, deve imediatamente pagar por ele: é evidente que, se ele quisesse pagar, teria tirado o dinheiro mais depressa.

*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.




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