quarta-feira, 31 de agosto de 2016

O novo Jeca Tatu



* Por Eduardo Carvalho


Alguém precisa anunciar a existência de um novo Jeca. Visualmente diferente, e também com alguns hábitos adaptados à vida mais urbana, essa reencarnação do caboclo preguiçoso infesta agora as maiores cidades brasileiras. O Jeca Tatu hoje é um piraquara do Rio Pinheiros, vacinado, bem nutrido pelos melhores aperitivos, de bigode tingido, com meia dúzia de cursos de vinho no currículo e bônus no fim do ano para passear no shopping.

O Jeca Tatu antigo levava para a feira o que a “natureza derrama pelo mato”. O shopping hoje é o mato do novo Jeca Tatu. É onde ele se abastece de acordo com o seu primeiro princípio: desde o Jeca clássico, “seu grande cuidado é espremer todas as conseqüências da lei do menor esforço”. E nenhuma prática social mais civilizada, se não estiver alinhada com esta regra primordial, consegue ser absorvida pelos hábitos do Jeca Tatu, O Incivilizável.

Antes, o Jeca Tatu não tinha consciência do estado espiritual bruto em que desperdiçava a sua vida. O novo Jeca, porém, já familiarizado com algumas letras, provavelmente sabe que existe o risco de ser confundido com o antigo. E por isso ele se empeteca com pequenos sinais do progresso, como um carro alemão. É que o Jeca contemporâneo, porque vive no ar-condicionado, sob luz fluorescente, acha que consegue dessa forma escapar de ser Jeca. Só que conforto não educa. Apesar de materialmente mais civilizado, a jequecie resiste indomada no seu espírito e em quase todos os seus gestos.

A perspectiva jecocêntrica do mundo é inspirada na combinação da moleza com a malandragem. E nisso os dois Jecas são totalmente iguais. O Jeca clássico era esperto na venda de uma mula; o de hoje engana o comprador da moto que usa nos finais de semana. Ao contrário da previsão original, o Jeca Tatu na verdade se deixou, sim, penetrar pelo progresso. Mas não pela civilização. Ele tem cartão de crédito, acumula milhas e viaja de primeira classe; mas ainda não aprendeu como funciona a lógica de uma fila indiana.

O Jeca, antes e hoje, é incapaz de se comportar aceitavelmente. Inseguro para se apresentar dentro das regras, ele tenta fazer com que a sua vida funcione, eticamente, pelas beiradas do mundo civilizado. Mas essa suposta esperteza é também uma forma de se acocorar. O novo Jeca ainda é espiritualmente um vegetal, que “não fala, não canta, não ri, não ama. Só ele, no meio de tanta vida, não vive...”


* Escritor.

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