domingo, 21 de agosto de 2016

Domício da Gama

* Por Fernando Magalhães


Domício acendrou a sua mocidade e facetou o seu engenho no convívio dessas ideias e na intimidade dessa gente. Em breve, outro ambiente intelectual concorria também para a sua formação artística. A sina fagueira, amparando-lhe o destino, favoreceu-lhe a primeira viagem, por conta do seu ofício. Em Paris, acolhe-o a casa de Eduardo Prado, aberta aos brasileiros, viajantes e emigrantes, com a hospitalidade do coração e do espírito. Aí, o culto da forma graciosa obrigava a lidar no imprevisto original e sagaz, mas da técnica do chiste derivava a ideia oportuna, luzida e moça; todos as temas desdobravam-se em frases multicores, os grandes assuntos e os pequenos motivos provocavam o conceito sutil e a dito prazenteiro. Andava o espírito pelo ar. Domício, fiel àquela camaradagem lustrosa, mas pouco afeito à bulha esfuziante, era mais companheiro dos livros de bom quilate e de melhor trato, onde começou a trilhar, curvado sobre os preciosos documentos geográficos, o largo caminho que o levaria ao termo de merecida consagração.

Aparece o cronista. Dele é boa parte da colaboração europeia da Gazeta de Notícias, e os assuntos parisienses vinham ao leitor carioca já naquele estilo reverente e cauteloso, dizendo menos e sugerindo mais, piedoso na maldade, sereno na surpresa, recatado no sofrimento e singelo na emoção. Nos seus primeiros ensaios jornalísticos, como os do “Alfinete”, escritos aos vinte anos, esboça-se o narrador sintético que, mais tarde, traçará as linhas aristocráticas dos Contos a meia-tinta e das Histórias curtas.

Estes dois volumes, os publicados, pois há manuscritos para outros tomos, e a erudita colaboração na Grande Enciclopédia não são a sua única obra literária. A produção epistolar abundante e variada merece público, pelo tom vivo das suas linhas imprevistas comentando, com graça e até filosofando com profundidade. Vê-se assim como sobre o escritor influía a condição do leitor amigo, para quem corriam espontaneamente impressões rápidas e perfis momentâneos tragados pela sua pena despreocupada.

Domício escrevia certo de ser pouco lido; na sua autocrítica, lembra a lenda do passarinho que só contava até sete e, crente de falar a muito poucos, embora sete lhe parecesse quase nada, consolava-se com a esperança de, na vida das emoções, já não ser solidão número tão restrito.

Não será solidão, mas é retraimento. Na sua linguagem exata e disciplinada, melancólica e enternecida, a concisão domina a ideia, gerada numa reflexão intensa servindo à verdade e ao sentimento, mas receando o leitor que “nas páginas falhas descobre o que quisemos exprimir.”

A concisão explica o título das histórias curtas, o receio confirma os contos a meia-tinta. Traços leves, entrechos ligeiros, sensações instantâneas, estendem-se tanto quanto as psicologias complicadas. É a largueza dentro da brevidade: um panorama em poucas linhas, um caráter em duas réplicas. Escreveu como falou: homem de educação esmerada, falava baixinho; baixinho também escreveu, e, na prosa como na conversação, sussurrou deliciosamente, no encanto e na suavidade. Criador imparcial, sente a figura que imagina e o caso que compõe, mas não os carrega nem os deforma com o acessório, por lhe bastar a alusão branda e para não melindrar a argúcia de quem o lê.

Como divergem na estrutura íntima e no feitio literário Domício e o amigo querido cujo nome, por sua escolha, protege a cadeira que só a sua recordação ainda ilustra! Pompéia, um afirmativo, vigoroso e firme, Domício, um impressionista, delicado e tímido; no primeiro a imaginação alada e vertiginosa, no segundo a descrição sincera e correntia; um arrebatando para a fantasia, outro pendendo para a reflexão. Pompéia inovador privilegiado e tumultuário. Domício narrador exato e tranquilo; num toda a força da natureza esplendorosa e cataclísmica, noutro a sombra da paisagem florida onde se escuta o silêncio. Na vida, Domício, o disciplinado, singrando à feição de sua sorte dadivosa; Pompéia, o revoltado, sacudido pela inclemência do seu destino tempestuoso. E até na morte: um buscando-a num dia de alegria, o outro esperando-a em horas de tristeza.

Há em Domício, porém, uma realidade palpitante: as narrativas devem ser folhas destacadas do caderno do noticiarista, anotando episódios vividos com cuidado nas regras dos clássicos modernos. “O Cônsul”, “que ficou à meia viagem da celebridade e da glória” e cuja vida “de cativo desejo, multiplica-se pelas decepções”, existiu e existe por aí, mortificado na pretensão desesperada e infeliz. “Só” é talvez a confissão íntima e a justificativa ressentida do celibatário tão tardiamente arrependido e que não devia comprometer a vida única “num jogo perigoso de ventura”. A “Possessão” é um incidente bulhento de vizinhança sossegada, história triste de amor feminino inesgotável, acompanhando, martirizado e escravo, a degradação e a miséria. Na “Canção do rei de Tule” há uma cena de meninice fixada pela gratidão no perfil da criatura branda que, falando do passado, pulava por cima da mocidade sepultada nas ruínas de uma afeição mentida e contava histórias “nas tardes torvas em que chora uma saudade dentro de nós como se já tivéssemos vivido este dia noutra vida e fosse de sua memória a melancolia que nos aflige”.

Mesmo a ficção tem no fundo um vago e esquecido já visto. O tipo da “obsessão”, debatendo-se na dúvida da responsabilidade da culpa, é comum nos cárceres. No convívio alegre e airado do vício feminino, o “Moleque Tobias” costuma ter o prestígio sexual das extravagâncias. “Miss Epaminondas” pode bem ser a réplica delicada, sentimental, irônica, talvez vingativa, à indiferença cortês de uma mulher desejada. “João Chinchila” vale quase por uma autobiografia, pelas coincidências frisantes na paisagem da terra natal, na obscuridade das horas infantis, na docilidade da juventude trabalhosa, no surto da carreira feliz, na solidão contemplativa desse drama onde toda a gente imagina que “chega tarde e donde sai cedo demais”, e até no inesperado descanso em que aguardou, tranquilo mas dolorido, que o viessem buscar “num carro de gala, com cavalos empenachados, cantos em latim e gente respeitosa, acompanhando o triunfo do homem a quem foi dado viver sem pensão nem cuidados”. “Ponta Negra”, inédito precioso, admirável evocação da terra risonha que lhe maravilhou a primeira mirada, é um voto de afeto à pátria distante, resumida naquela beirada interminável de praia branca e langorosa, onde o rude pescador resignado aponta o rumo da vida útil, avisando com voz displicente que “sozinho num barco ninguém vai longe”.

E como não seguiu sozinho no seu barco venturoso, Domício foi muito longe. Revolvendo a rica coleção de mapas da biblioteca de Prado, conheceu Rio Branco, o pacífico e invencível conquistador do Brasil litigioso. Firmou-se logo essa união que nunca mais desmereceu; uma identidade de sentimentos, de ideais e de inclinações irmanava os dois homens, lidando tanto um para a fama imortal do outro que na apoteose do maior o menor também refulge. Longas horas passaram eles de inspirada contemplação, adivinhando e definindo a grandeza da pátria. Enamoraram-se da forma maravilhosa da nossa terra. Na carta brasileira, onde repousavam as suas cogitações e as suas ansiedades, as linhas fronteiriças esfumavam-se na contenda ameaçadora, perdidas na incerteza dos pressentimentos. Brasil imenso, mas incompleto na perspectiva sinistra das mutilações; robusto, mas inquieto na visão sanguinolenta da derrocada; opulento, mas penando no temor enervante do infortúnio; abençoado, mas sofrendo a ameaça torva da iniquidade. Assim os dois sentiram, e, por isso mesmo, ainda mais amaram, embora de longe, o Brasil estremecido.

Rio Branco é o épico bandeirante dos novos tempos, maior do que os violadores dos sertões, arrastados pela miragem das serras resplandecentes. Demarcador da pátria, herói da fraternidade continental, ele só basta para afiançar a raça adolescente, responsável pelos destinos comuns. No seu rumo à celebridade, teve em Domício o companheiro mais diligente e mais dedicado; ambos olharam longa e amorosamente a terra vasta e querida para depois poderem jurar pela sua grandeza definitiva.

Em Washington, em Berna, em Petrópolis, Domício da Gama foi o organizador da vitória; também nunca o insigne defensor do nosso patrimônio territorial deixou de distribuir com ele homenagens e honrarias. Era dos do tempo do Rio Branco, e o tempo de Rio Branco marca o trecho mais viçoso da história republicana, o primeiro dentre os preferidos. Esta condição consagra. Tantos anos longe do Brasil, Rio Branco, investido vitaliciamente na direção da política internacional, foi acima de tudo o hábil movimentador da intelectualidade brasileira. Jurisconsultos, jornalistas, diplomatas, homens de letras, com o exemplo empolgante da sua atividade fremente, sentiam a estranha vibração de amor ao passado e ao futuro da nação.

Em torno do glorioso dirigente, formavam os tipos de eleição e, dentre eles, destacava-se Domicio da Gama, respeitado e senhoril, companheiro dos grandes dias e das horas árduas. A sua colaboração afincada deixou traço indelével na integração do país, terminadas as lides confinais. Então, Ministro e Embaixador, partiu para representar com vantagem a nossa cultura e a nossa cordialidade. No Peru, rápida e honrosamente, desfez ressentimentos e cimentou concórdias. Em Buenos Aires, no momento talvez mais grave destes últimos cinquenta anos, atuou desassombrado com a serena energia da sua doçura e a límpida verdade da sua razão dentro da própria divisa afirmar sem afrontar dissipando o ambiente tempestuoso de hostilidade em que perigou a paz sul-americana, e conduzindo seguro o dissídio ameaçador à galhardia do seu remate generoso. Em Washington, pregando e praticando a diplomacia desembuçada, substituto de Joaquim Nabuco, fez do peso da sucessão o estímulo do êxito e alcançou aplauso largo, prêmio excepcional na função de juiz acatado em tribunal de estranhos e notáveis. Nesse cargo, adquiriu a melhor deferência para si próprio e toda a estima para o seu país; da atenção afetuosa que lhe dispensava Wilson resultou a excepcional situação do Brasil na assembleia de Versalhes onde, por intermédio do Presidente americano, foi possível ao interesse brasileiro penetrar um pouco na vontade encastelada dos Big Four. Depois, Rodrigues Alves, o iniciador de Rio Branco na gestão dos negócios exteriores, de novo chamado ao Governo, deu-lhe a direção do Itamarati, honrando, assim, o benemérito descobridor de capacidades, no discípulo dileto, a memória do seu maior Ministro. Por fim, em Londres, guardou a linhagem dos antigos e famosos serventuários daquele posto e professou coisas brasileiras nas universidades inglesas.

O julgamento de Domício da Gama, como homem e servidor público, está firmado na carta que a Hélio Lobo escreveu John Basset Moore: “Sua inteligência apreendia tudo muito rapidamente, suas conclusões eram seguras e firmes. Tinha um excelente discernimento e um caráter que equivale aos seus predicados. Nunca conheci ninguém mais reto e mais honrado, em todos os seus atos. A duplicidade ou o artifício jamais entraram em seus hábitos de pensamento e de ação. Aqueles que tinham de privar com Domício da Gama logo verificaram que podiam depositar inteira confiança em sua palavra; ele conseguiu assim para o seu país o que a outros seria impossível alcançar.”

Ficou lavrado o juízo dos contemporâneos de outras plagas. Gente estranha, conhecendo a morte, lamentou-se no mesmo tom, porque, por onde ia, Domício deixava recordação de uma nobreza pura e de uma bondade refinada. Mas entre os seus tentaram diminuí-lo pela maledicência, pela inveja e até pelo remoque.

“Cada vez mais me apego a esta terra bendita de beleza e doçura; todo o resto para mim agora é exílio”, escreveu Domício, em uma das suas últimas despedidas, a Mário de Alencar. Quem assim se doía de não entreter continuamente o olhar, magoado de recordações, no encantamento do céu infinito e na graça das paragens desabrochadas, sofreu suspeição de indiferença e de esquivança, como um desarraigado do seu torrão. No entanto, essa sensibilidade tão elevada em uma criatura tão nítida jamais destoou da exultação amorosa pelo Brasil afortunado. A sua existência é disso uma lição, porque é inçada de grandes encargos e de maiores cuidados pelo Brasil completo, pelo Brasil culto, pelo Brasil engrandecido, pelo Brasil respeitado. Basta ler a sua afirmação de fé patriótica e confiante no futuro do país, a formosa oração tão cheia de desprendimento, dita, sendo ele chanceler, aos estudantes de São Paulo. É uma exortação vigorosa ao gênio da mocidade tersa, de cuja seara brotarão os cidadãos conscientes. Falou como um homem de responsabilidade, destes que não mentem ao seu tempo nem iludem a sua gente. Na indecisão do presente nebuloso, é preciso despertar as aptidões adormecidas com as apóstrofes clarinadas pela verdade intimorata. Só assim acordarão as quebradas da nossa terra que desafia todas as energias com o ermo das suas maravilhas, a penúria dos seus viventes, a narrativa dos seus males, a tristeza dos seus hábitos, a displicência dos seus usos, o tédio dos seus labores e a indiferença do seu futuro. O momento histórico universal pede este rebate de ressurgimento; por toda a parte, o liberalismo inscrito nas leis foge dos costumes, decretado pela razão não penetra no sentimento e, por isso, anda por toda a parte o exemplo doloroso da democracia sem fé, sem alma, sem virtude, democracia de embuste, entrosada na engrenagem das velhas servidões.

Na sua tarefa de trinta anos, a personalidade de Domício ganhou em brandura, atributo do seu coração, benefício do seu convívio, recompensa do seu afeto, condição do seu mister, alegria do seu viver. Os privantes mais fraternais desconheciam-lhe um arrebatamento, e, só dias antes da morte, a sua companheira de doze anos de vida conjugal ouviu-lhe a primeira rudeza amargurada contra o descaso dos homens. Por fim molesto menos de doenças do que de dissabores, declinou em rápido crepúsculo, passado de desenganos, esmorecido de humilhação, desconsolado de melancolia, sofrido de mágoas, desamparado de justiça, compondo intimamente em seu mote final, essa ansiosa interrogativa “Por que me maltratam?” queixume suave de uma atribulação provada na renúncia e de uma tristeza amaciada na ternura. E tal como fora nos anos de fortuna, silencioso e plácido, nos dias de pesar mais se aperfeiçoou pela resignação e pela virtude, encerrando em morte austera as agruras de uma vida edificante.

(Discursos acadêmicos, vol. VI, 1936)


* Médico, professor e orador, membro da Academia Brasileira de Letras.

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