domingo, 21 de agosto de 2016

Sutilezas e ironias

  
* Por Pedro J. Bondaczuk


As pessoas dotadas de grande capacidade de apreensão da realidade (que são raras) formam com facilidade juízo sobre os fatos e sobre os indivíduos que as cercam. Desenvolvem, por conseqüência, aguçado senso crítico. Opinam sobre tudo e sobre todos e nem sempre conseguem manter o desejável equilíbrio. Há  opiniões que o bom senso recomenda que guardemos para nós, até porque, sua divulgação traria mais mal do que bem. Não construiria nada e ainda poderia nos expor a represálias. Estes críticos afoitos e desastrados, muitas vezes, partem para destemperos verbais sem sentido, para autênticas provocações gratuitas, quando sua intenção sequer é de confronto, mas de marcar posição.

Como todo o indivíduo normal tem amor próprio e não suporta ser criticado, vem a reação. E esta nem sempre é civilizada, dependendo de quem seja o criticado. Há alguma maneira de não se omitir diante do que é errado ou incompetente, mas sem se comprometer, sem arranjar inimigos gratuitos, sem se expor aos riscos da represália? Há, mas requer muito talento, muita sabedoria, muito preparo para o seu uso. Uma das armas do intelectual, para não abrir guerra com os semelhantes, mas ainda assim não deixar de criticar o que (ou quem) seja criticável, é a sutileza.

Este recurso, no entanto, tem que ser utilizado com perícia, com precisão, "cirurgicamente", como um bisturi. Precisa conter veracidade e respeitar o limite entre o equilíbrio e a hipocrisia. Caso contrário, o risco de descambar para o ridículo é enorme. Ser sutil é dizer tudo o que deve ser dito com tamanha elegância e ponderação que não dê margem à mínima reação adversa. Mas o poeta Francesco Petrarca alertou: "Quem sutiliza demais acaba por se perder". E acaba mesmo. Trata-se de um expediente para ser utilizado com parcimônia.

Outro recurso --- este mais contundente --- para se fazer críticas é a ironia. Mas exige ainda mais cuidados do que a sutileza, dada a sua latente agressividade. Há escritores que são mestres neste mister. Outros, todavia, não souberam brandir com habilidade esta "navalha" sumamente afiada e cortante e descambaram para a grosseria. Acabaram "queimados" pela crítica, ridicularizados pelos inimigos e repudiados pelos leitores.

O filósofo Sören Kirkgaard, referindo-se a Sócrates, observou: "A ironia é o gládio, a espada de dois gumes que ele brandia como um anjo da morte sobre a Grécia". Todavia, apesar de toda a sua perícia no uso dessa arma, o sábio despertou rancores perigosos, diria mortais, e arranjou inimigos de muito poder. Findou por ser condenado à morte, forçado a beber cicuta, em um processo visivelmente rancoroso e vingativo, baseado em acusações mesquinhas, absurdas e sem fundamento. Como toda a arma, esta também deve ser usada apenas de maneira competente e na hora adequada e ainda assim não há segurança de que não desperte a ira do criticado.

O mesmo Kirkgaard preceitua: "A ironia não carece de significação nem deve ser totalmente deposta. Dominada, é uma potência limitadora que ensina a colocar a ênfase adequada na realidade impedindo a idolatria do fenômeno. Ela é uma arma contra o cinismo, a dissimulação e a hipocrisia de nosso tempo, que exige de tudo e de todos (...) se não um 'pathos' elevado pelo menos altissonante, se não especulação, pelo menos resultados; quando não verdade, pelo menos convicção, quando não sinceridade, pelo menos protesto de sinceridade, e na falta de sensibilidade, pelo menos discursos intermináveis a respeito desta".

Um bom exemplo do uso de sutileza, na crítica de um determinado comportamento, é a seguinte observação do escritor norte-americano Josh Billings: "Existem pessoas tão afeitas ao exagero que não sabem dizer uma verdade sem mentir". Ou esta de Umberto Eco, acerca de intelectuais que fazem todo o possível para aparecer, mesmo que para isso precisem prostituir suas idéias e abrir mão das próprias convicções: "Há  estudiosos que sabem tornar o seu silêncio sonoro". A afirmação foi feita em um artigo em que o romancista aborda o "sistema de celebridades" determinado pelos meios de comunicação de massa. Um homem prático nunca faz críticas destrutivas contra quem esteja tentando sinceramente construir. E mesmo as construtivas, só as faz a quem esteja disposto a ouvir e aproveitar a correção de rumo. Quanto aos corruptos, aos incompetentes, aos maus... Bem, estes a prudência manda que sejam deixados quietos em sua mediocridade...


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk



Um comentário:

  1. Conseguir exercer essa arte proposta é tão difícil quanto escrever este texto. Bom e útil.

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